Um juiz num Estado laico não pode buscar a fundamentação de suas decisões nas suas crenças religiosas. Celso Lafer para o Estadão:
“Notável
saber jurídico” e “reputação ilibada” são os critérios de escolha de
ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) estabelecidos pela
Constituição. A sua indicação cabe ao presidente da República, mas a
escolha só se efetiva depois de avaliação e aprovação pela maioria
absoluta do Senado Federal.
Os
parâmetros constitucionais são explícitos. Não cabe abrir espaço para
considerações a respeito da fé religiosa de um indicado. Não é critério
que se coadune com o Direito brasileiro o ingrediente de ser
“terrivelmente evangélico”. É, no entanto, o que o presidente aponta
como uma faceta de sua escolha preferencial do nome de André Mendonça
para o cargo.
Trata-se
de um vício de origem no âmbito de um Estado de Direito, que consagra a
objetividade do “governo das leis” e repele o idiossincrático de um
“governo de homens”. Requer, assim, pronta refutação, pois o Brasil é um
Estado laico desde a proclamação da República. Não é um Estado
confessional, no âmbito do qual existam vínculos entre o poder político e
uma religião.
Em
nosso país, na linha da tradição constitucional americana, que inspirou
Rui Barbosa, existe, como dizia Jefferson, um “wall of separation”
entre o Estado e as religiões. Esse é o sentido do artigo 19 da
Constituição. É por isso que a fé religiosa não é critério de escolha
para cargos governamentais, muito especialmente o de ministro do STF,
instituição que tem, no topo do Judiciário, a responsabilidade pela
guarda da Constituição e de seus dispositivos, incluída a laicidade.
A
laicidade relaciona-se com grandes matérias constitucionais. Entre
elas, a tutela dos direitos humanos, a asserção do pluralismo e da
diversidade da sociedade e a aceitação do outro na prática e nos
costumes da convivência da cidadania numa democracia.
Estado
laico significa Estado neutro em matéria religiosa, não solidário em
relação a qualquer atividade religiosa, pois não se fundamenta numa fé,
como, na situação-limite, em Estados teocráticos, nos quais poder
religioso e poder político se fundem.
A
laicidade obedece à lógica da sabedoria liberal da arte da separação
das esferas e da sua autonomia. A separação Igreja-Estado está em
consonância com a lição dos Evangelhos: “A César o que é de César, a
Deus o que é de Deus”.
A
laicidade se contrapõe ao dogmatismo e à intolerância. É uma regra de
calibração que permite a gestão pública de diferenças religiosas e de
opinião. É a base de uma postura aberta em relação ao diverso e ao
diferente que caracteriza a pluralidade da condição humana. Tem como
método o persuadir, e não o coagir. Parte do pressuposto de que a
verdade não é una, mas múltipla, e tem várias faces, dada a complexidade
ontológica da realidade.
A
laicidade é uma das maneiras de responder aos problemas da intolerância
e de um dos seus desdobramentos, a polarização fundamentalista,
intransitiva e excludente.
Historicamente,
deve-se ao espírito laico a tolerância religiosa, da qual proveio o
direito de liberdade de crença e de pensamento, de opinião e da cultura.
Dela se originou a revolução científica, o processo incessante de
ampliação do saber, que nasce e se desenvolve pela negação do dogmatismo
e se baseia na capacidade de revisão contínua dos próprios resultados
da pesquisa, à luz da razão e das provas da experiência – e não da fé. É
o que fundamenta a liberdade da pesquisa e a autonomia da universidade.
Graças
à tolerância deu-se a dinâmica das transformações das relações de
convivência por meio da afirmação da democracia, consagrada na
Constituição de 1988. É o que cria espaço para a contenção da violência
entre grupos e indivíduos, maiorias e minorias, propiciando plataforma
comum, na qual todos os cidadãos podem encontrar-se enquanto membros de
uma comunidade política, diversificada nas suas crenças e opiniões.
Num
Estado laico, o Direito é a sua moldura jurídica. A Bíblia não é a
Constituição. Por isso, o juiz deve decidir de acordo com o Direito e os
valores nele positivados. O seu método de interpretação deve seguir o
espírito laico do exame crítico dos assuntos e dos seus problemas. Nas
suas decisões, deve respeitar e buscar no mundo – e não no transcendente
– a ética, do viver honesto dos clássicos princípios de não prejudicar
ninguém e dar a cada um o que é seu.
Um
juiz num Estado laico não pode buscar a fundamentação de suas decisões
nas suas crenças religiosas. Não pode ter a pretensão de, como juiz,
assumir, ainda que em surdina, a voz de Deus. Num Estado laico e plural,
nas decisões do Judiciário vale o que diz Camões: “O que é de Deus,
ninguém o entende/ Que a tanto o engenho humano não se estende” e
“ocultos os juízos de Deus são”.
Um
juiz “terrivelmente evangélico” representa o risco de transpor os seus
conselhos de pastor para os seus fiéis, no âmbito próprio da sociedade
civil, em inapropriados comandos jurídicos-judiciais do Estado para a
sociedade brasileira. É um risco que caberá ao Senado avaliar com a
devida profundidade.
PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992 E 2001-2002)
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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