A tragédia do Afeganistão revela que o interesse nacional americano e o conceito de Ocidente estão a ser esvaziados da sua dimensão moral e da sua responsabilidade perante o mundo. Artigo do professor João Carlos Espada para o Observatório:
1.
Devo começar por agradecer à Direcção do Observador ter-me autorizado a
interromper as férias das minhas crónicas semanais (que seriam apenas
retomadas na próxima segunda-feira, 30 de Agosto). E aos eventuais raros
leitores apresento as minhas desculpas por voltar a maçá-los antes do
interregno prometido. Mas a tragédia da retirada americana do
Afeganistão simplesmente impediu-me de ficar em silêncio.
É
uma tragédia que, em meu entender, não deve nem pode ser ignorada. Em
primeiro lugar, é uma tragédia para os afegãos — e, em primeiríssimo
lugar, para as afegãs — que voltam a estar à mercê do terrorismo
islâmico dos talibãs. É também uma tragédia para a América, cuja
autoridade e credibilidade internacionais ficam de rastos. Mas é
sobretudo — e este é o ponto central que quero sublinhar — uma ameaça
para a autoridade e credibilidade morais da NATO e do Ocidente.
2.
Donald Trump iniciou todo este processo em nome de “America First”,
porque foi ele que assinou um tratado de retirada americana com os
Talibãs. Lastimavelmente, também o Presidente Biden falou em nome do
interesse nacional americano para justificar a caótica retirada do
Afeganistão, no muito lastimável discurso televisivo de domingo, 15 de
Agosto, bem como nas declarações ulteriores.
Quero
deixar muito claro que tenho o maior respeito pelo interesse nacional e
pelo sentimento patriótico. Embora a expressão “America First” tenha
nos EUA uma genealogia intelectual no mínimo duvidosa, nunca tive uma
oposição de princípio ao legítimo sentimento de prioridade ao interesse
nacional. [Recomendo, a este propósito, o excelente livro de Steven B.
Smith, Reclaiming Patriotism in an Age of Extremes, (Yale University
Press, 2021), a que conto poder voltar numa próxima crónica].
Por
isso mesmo, tenho uma crítica muito mais grave ao alegado patriotismo
do sr. Trump e, lamento muito ter de agora acrescentar, ao alegado
patriotismo do Presidente Biden: eles simplesmente não estão a defender o
patriotismo americano da “Land of the Free, Home of the Brave”.
3.
Um honorário cidadão americano — Winston Churchill, cuja mãe aliás era
americana — trabalhou durante vinte cinco anos num livro, em quatro
volumes, sobre a História dos Povos de Língua Inglesa. No prefácio ao
primeiro volume, publicado em 1956, escreveu ele:
“Pela
segunda vez no presente século, o Império Britânico e os Estados-Unidos
enfrentaram em conjunto os perigos da guerra na mais larga escala
conhecida pelos homens, e, desde que os canhões deixaram de disparar e
as bombas de explodir, nós ficámos ainda mais conscientes do nosso comum
dever para com a raça humana.”
Qual
era esse “nosso comum dever para com a raça humana”? Churchill
definiu-o inúmeras vezes, na alegria da vitória mas sobretudo nos tempos
sombrios em que enfrentou a ameaça da derrota total. Num tocante
discurso em Paris, a 24 de Setembro de 1938 (seis dias antes do trágico
Acordo de Munique), quando se encontrava totalmente isolado na sua
condenação do apaziguamento com Hitler, disse Churchill:
“Não
temos nós uma ideologia — se tivermos de usar essa palavra horrível,
ideologia, — não temos nós uma ideologia própria na liberdade, numa
Constituição liberal, no Governo democrático e parlamentar, na Magna
Carta e na Petição de Direitos?”
4.
Este sentimento de “comum dever para com a raça humana” esteve na base
da Carta do Atlântico, assinada por Churchill e Roosevelt em Placentia
Bay, a 14 de Agosto de 1941 — precisamente 80 anos e um dia antes do já
referido anúncio do Presidente Biden sobre a retirada do Afeganistão, a
15 de Agosto. Os EUA não tinham ainda sequer entrado oficialmente na II
Guerra, mas o Presidente Roosevelt assumiu como seu dever patriótico
assinar com o primeiro-ministro britânico um documento sobre a defesa
comum de uma ordem mundial fundada em regras. Ainda hoje essa Carta do
Atlântico é consensualmente descrita como tendo lançado as bases da
ordem mundial construída pelas democracias euro-atlânticas após a
derrota do nazismo em 1945.
5.
Por outras palavras, a minha crítica contundente aos presidentes Trump e
Biden não é uma crítica ao sentimento patriótico americano. É uma
crítica, assumidamente mais grave, ao abandono da dimensão moral que
esse sentimento patriótico sempre teve, desde a Declaração de
Independência de 1776: “Sustentamos que estas verdades são
auto-evidentes, que todos os homens são criados iguais, que eles são
dotados pelo seu Criador com certos direitos inalienáveis, entre os
quais estão o direito à Vida, Liberdade e busca da Felicidade.”
6.
De onde vem aquele esquecimento da dimensão moral do interesse nacional
americano? Não tenho a pretensão de saber a resposta a esta magna
questão. Mas tenho seguramente uma proposta para o urgente debate sobre o
esquecimento da dimensão moral do interesse nacional americano — bem
como sobre o esquecimento da dimensão moral da NATO e do Ocidente.
Para
início desse desejável debate, recordo a mensagem do ilustre filósofo
alemão, Leo Strauss (1898-1973), que encontrou refúgio na livre América
na década de 1930 e adoptou a cidadania americana. Escrevendo sobre as
origens da caótica e primitiva dominação intelectual da Europa
continental pelos tribalismos rivais do comunismo e do nazismo, Strauss
denunciou o relativismo niilista como berço dos fanatismos tribalistas
rivais, comunista e nazi.
Resumindo
um longo e sofisticado argumento, direi que Strauss argumentou que a
ascendência dos tribalismos comunista e nazi era produto do abandono da
tradição moral e intelectual europeia e ocidental, fundada em Atenas,
Roma e Jerusalém. Esta tradição pluralista europeia e ocidental —
greco-romana e judaico-cristã — assentava no comum reconhecimento da
existência de padrões morais objectivos de distinção entre o bem e o
mal: “right and wrong by nature”, também designado pelo reconhecimento
do Direito Natural.
7.
Todos os grandes filósofos da tradição europeia e ocidental — de Platão
e Aristóteles a Tomás de Aquino, Montesquieu ou Adam Smith, entre
muitos outros — reconheceram essa distinção crucial entre ‘right and
wrong by nature’. Como também recordou Karl Popper, aqueles grandes
autores da tradição euro-Atlântica podiam discordar sobre os critérios
exactos de distinção entre “right and wrong’. Mas todos aceitavam que
estavam a discutir sobre padrões objectivos de bem e de mal — que não
dependiam de tribalismos particulares.
Esta
ideia ocidental, fundadora da conversação pluralista acerca da
distinção objectiva entre bem e mal, foi, segundo Strauss, gradualmente
erodida por Maquiavel, Hobbes, Rousseau e, culminantemente, por
Nietzsche. Foi este (muito pouco) cavalheiro que proclamou a chamada
“libertação” da distinção objectiva entre bem e mal — herdadas, como o
próprio enfatizou, de Atenas e de Jerusalém.
Nietzsche
talvez acreditasse que estava a “libertar” os “homens superiores” do
“preconceito” sobre o bem e o mal. Na verdade, basicamente “libertou”
todos os tribalismos — na época sobretudo os nazis e os comunistas — de
quaisquer constrangimentos morais. Na época actual, a rivalidade tribal
entre nacionalismo xenófobo e anti-ocidentalismo woke está destruir o
sentido de honra e dever associado aos ideais do Ocidente e do Mundo
Livre. Voltarei a este tema.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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