Só
os muito obtusos têm o direito de subestimar a gravidade dos males que a
imposição de uma ditadura traria ao Brasil. A esses é também dado o
direito de ignorar que Jair Bolsonaro – coadjuvado por um número
decrescente, mas ainda expressivo, de bolsonaristas fanáticos – não
pensa noutra coisa.
Os
demais podem ser classificados em dois grupos: os democratas e um grupo
amorfo, formado por bolsonaristas a caminho da desilusão e
indiferentes. Os democratas sabem perfeitamente o que têm de fazer:
protestar contra os desatinos diários do inquilino do Planalto e
trabalhar ativamente pela formação de uma candidatura capaz de se opor
aos extremos populistas na eleição de 2022.
Isto
posto, penso que a sustentação do regime democrático está na
dependência de dois fatores. O primeiro é, obviamente, o centro. A
polarização eleitoral de 2018, cujos efeitos foram agravados pela
pandemia, esmagou os partidos, já de si débeis, que tentavam ocupar esse
espaço. Em médio prazo, é imperativo reconstituir tais partidos, mas o
momento que vivemos é uma emergência. O que ela exige é uma solução
rápida e eficaz: escolher o candidato certo para a eleição, tendo em
mente que já estamos na contagem regressiva. Reconstituir todo o nosso
esfarelado sistema de partidos não é algo que se possa efetivar da noite
para o dia.
Dentro
desse quadro, o segundo fator que me propus discutir adquire
importância singular, pois diz respeito ao longo prazo, mas precisa ser
iniciado o quanto antes. Refiro-me à própria coluna vertebral do sistema
político.
Até
os anos 50 do século passado, ou seja, no imediato após-guerra, demos
por assentado que uma elite relativamente exígua e o texto
constitucional adotado em 1946 cumpririam a função básica de vertebrar o
regime democrático. Nosso principal erro foi subestimar a corrosão do
sistema político pelo antagonismo getulismo x antigetulismo, das
discordâncias referentes à estratégia de crescimento econômico e pelo
onipresente veneno da guerra fria.
No
momento atual, urge-nos encarar a realidade com mais sobriedade e
lucidez. Não só os problemas que temos pela frente se agigantaram, mas
as ameaças à democracia são proferidas, às vezes de forma explícita e
sem nenhum pudor, por titulares de funções públicas elevadas. Entre os
antídotos a considerar, peço licença para me concentrar na questão da
elite. Uma elite exígua e limitada à esfera política, como a que povoava
nossas mentes nos anos 50 do século passado, hoje, manifestamente, não é
possível nem desejável. Somos agora um país muito maior e com carências
dantescamente mais graves. Digamos, abreviadamente, que a
governabilidade se tornou um problema agudo, mesmo na hipótese de
voltarmos brevemente a tempos normais. O contraponto à nossa antiga
imagem da elite é a mistificação populista do “povo”, uma entidade
amorfa, indefinível, como convém a esse gênero de política. O líder
populista tipicamente apela à totalidade do “povo” para se legitimar e
convoca seus militantes fanáticos para ameaçar as instituições
democráticas.
A
verdade é que democracia alguma jamais funcionou a contento quando se
deixou arrastar para um desses extremos. Precisamos de mais convicção
democrática e mais envolvimento e participação, mas a convocação que nos
cumpre fazer é aos possuidores de recursos (resource owners), vale
dizer, a todos os que detenham renda, riqueza, escolaridade, capacidade
de argumentação e até, simplesmente, tempo, disponibilidade de tempo,
recurso sem o qual um cidadão pouco pode fazer pela vida pública de seu
país. Em números, os resource owners distam muito do “povo” dos
populistas, mas são muitas vezes mais numerosos que a elite que tínhamos
em mente no século passado.
O
que venho de expor não é uma alternativa a qualquer das questões de
substância que têm sido consideradas em nosso debate público. Não é um
substituto para a reforma política. Não dispensa alterações
constitucionais que impeçam os criminosos de colarinho branco de se
refugiarem atrás do “trânsito em julgado”. É, isso sim, um apelo a um
sujeito real, de carne e osso, que poderia estar efetivamente presente
nas trincheiras de defesa da democracia, mas não encontra forma de o
fazer, dadas a irrelevância e o caráter oligárquico de nossos partidos
políticos.
O
problema, como o vejo, é que passamos décadas e décadas vituperando “as
elites”, quando, na verdade, somos um país rigorosamente desprovido de
elites, ou de qualquer travejamento que confira substância e sustentação
às instituições formais. Por difusa e dispersa que seja, a comunidade
dos possuidores de recursos pode vir a ser o anteparo sem o qual jamais
teremos uma reforma política séria. Esta constatação tem tudo que ver
com nosso futuro econômico e social. Não vejo possibilidade de o Brasil
retomar o crescimento econômico em bases sustentáveis sem uma reforma
política abrangente e profunda. E não me parece plausível que o
Congresso Nacional venha, sponte sua, a realizar tal reforma.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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