O populismo com características autoritárias e a tentativa de deslegitimar as eleições estão presentes nos EUA e no Brasil. Artigo do diplomata Rubens Barbosa para o Estadão:
De
retorno dos EUA, não resisto a comentar o cenário doméstico
norte-americano no início do governo Biden, em meio à crise da pandemia,
e compará-lo com o que se passa no Brasil. Se, no caso do Brasil, uma
análise objetiva da situação atual aponta para uma forte preocupação com
a evolução dos acontecimentos políticos, econômicos e sociais nos
próximos meses e anos, nos EUA a crise apresenta-se mais grave e
profunda. Dada sua posição de liderança no mundo, o desdobramento do que
acontece nos EUA poderá afetar outros países e mesmo tendências
globais.
A
divisão da sociedade norte-americana – acentuada nos últimos anos, em
especial na campanha política que precedeu a eleição presidencial – está
presente nos principais temas em discussão diária nos jornais e na TV. A
forma como os EUA saíram do Afeganistão fez aumentar a divisão, com
Donald Trump pedindo a renúncia de Joe Biden.
A
ameaça à democracia norte-americana é vista como a mais séria desde a
guerra civil, em 1861. Sua exteriorização foi concretizada nos
acontecimentos de 6 de janeiro, quando o Congresso, em Washington, foi
invadido por uma multidão de fanáticos seguidores de Trump, o que começa
a ser examinado por uma CPI no Senado. A polarização está presente
desde a indicação dos membros republicanos pela presidente do Senado,
sob a alegação de que iriam obstruir a busca da verdade sobre o que
realmente aconteceu. Trump deu voz à classe média e aos mais pobres das
áreas rurais, sobretudo nos Estados do sul, mais conservadores, e
ampliou a retórica negacionista que hoje contamina o Partido
Republicano. A atitude de negação da ciência e as evidências se estendem
desde a recusa à vacinação e ao uso de máscaras, passando pela
modificação da legislação eleitoral em 18 Estados para restringir o
direito do voto das minorias, sobretudo a negra, até a modificação da
regulamentação nas escolas para eliminar as discussões sobre costumes e
raça.
A
radicalização no Congresso dificulta o avanço da legislação prevendo
reformas econômicas para estimular a renda e reduzir o desemprego. O
impasse está presente num dos aspectos mais importantes, que são as
dotações para obras de infraestrutura em todo o País. Aprovada por um
voto no Senado, corre o risco de ser rejeitada na Câmara.
A
questão do aumento da compra de armas e a explosão da violência durante
a pandemia é outro item controvertido da agenda doméstica. Os números
de mortes são os maiores registrados nos últimos anos e a compra ilegal
de armas tem facilitado o crime organizado e a luta de gangues nas ruas
das principais cidades, além dos atentados em escolas e lugares
públicos. O tema está sendo tratado diretamente pelo presidente Biden,
dada a gravidade da situação, que se mistura com as novas regras para
tentar reduzir a violência das polícias estaduais, impregnadas de
preconceito racial. O movimento nacional contra o racismo, que ganhou
grande repercussão com a morte de dois negros por policiais, continua a
ter papel importante, com a inevitável polarização.
Recentemente,
diversos livros foram publicados com relatos das últimas semanas do
governo Trump, depois do resultado das eleições. Os relatos mostram o
caos reinante na Casa Branca em função da instabilidade emocional de
Trump. A desastrosa ação presidencial nesse período foi além de sua
denúncia, sem provas, de fraude nas eleições e da tentativa de reverter,
com manobras no Judiciário e nos Estados, os resultados das eleições,
que até hoje seus seguidores repetem ter sido ganha e que Biden roubou a
eleição. As instituições prevaleceram. Integrantes das Forças Armadas
saíram em defesa da democracia e as alegações de fraude foram derrotadas
na Suprema Corte. Surgiram relatos de que o Alto Comando das Forças
Armadas temia que Trump estivesse preparando um golpe de Estado e, como
comandante supremo, iria convocá-las para dar-lhe o necessário respaldo.
Nas conversas entre os militares, saiu a decisão de um pronunciamento
público do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas reafirmando a
posição de instituição com um órgão de Estado, e não de governo. No
âmbito da Defesa havia também o receio de que Trump, num arroubo insano,
determinasse um ataque militar ao Irã, o que poderia desencadear grave
crise no Oriente Médio. Precaução também foi tomada quanto ao acesso do
presidente ao equipamento para uma ação nuclear.
Como
se vê, o cenário doméstico nos EUA apresenta grande semelhança, em
muitos aspectos, com o brasileiro. A preocupação com o funcionamento das
instituições e da democracia não chega ao grau de risco que se percebe
hoje no Brasil, por circunstâncias específicas do nosso país. O
populismo com características autoritárias e a tentativa de deslegitimar
as eleições estão presentes nos dois países. A grande diferença até
aqui é a atitude pública de afastamento dos militares norte-americanos
da política, enquanto recentemente ocorreu exatamente o contrário no
Brasil. Militares da ativa e da reserva, em clara interferência
política, fizeram declarações que foram interpretadas como de apoio às
ameaças de realização das eleições em 2022 se o Congresso não aprovasse o
voto impresso.
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