O que disse Joe Biden? Na substância, que não teve culpa alguma em tudo aquilo. Entretanto, os afegãos que procuram desesperadamente fugir da tomada do poder pelos talibãs que se lixem. Texto do professor Paulo Tunhas para o Observador:
Se
houve algo de quase palpável na comunicação de Joe Biden na passada
segunda-feira, em que explicava as suas razões para a retirada total das
forças americanas do Afeganistão, e que se misturavam nas nossas
cabeças com as imagens de pânico e desespero no aeroporto de Cabul, foi o
sentimento de uma dissonância absoluta. As palavras e as imagens não
eram compatíveis umas com as outras, o desconcerto entre ambas era
patente. As palavras, aparentemente, falavam de sóbrias razões, as
imagens mostravam desespero e caos. O grau de insensibilidade necessário
para não experimentar esse sentimento de dissonância transcende a
imaginação. Mas há espíritos capazes desses prodígios.
O
que disse Joe Biden? Na substância, que não teve culpa alguma em tudo
aquilo. Que tinha herdado o problema do Afeganistão dos três presidentes
anteriores e que não o queria deixar para o próximo. Que a embaixada
americana tinha sido fechada em segurança. Que, se os Estados Unidos não
evacuavam mais colaboradores afegãos, tal devia-se ao facto de eles não
terem querido ser evacuados. Que honrou a sua promessa de acabar com o
envolvimento americano na guerra afegã. Que só podia fazer o que fez ou
aumentar a escala do conflito, coisa impensável. Que a culpa era de
Trump, que tinha iniciado negociações com os talibãs. Que a culpa era
também dos afegãos, que eram uns cobardolas ingratos e incompetentes com
quem ele tinha gasto uma data de dinheiro em vão. E acrescentou, sem
por um momento reparar na contradição em que incorria, que com ele
acabavam os passa-culpas. “The buck stops here“, nas palavras célebres
de Truman, que citou. Ele, Biden, era a responsabilidade em pessoa, a
responsabilidade virtuosa e assumida.
Entretanto,
os afegãos que procuram desesperadamente fugir da tomada do poder pelos
talibãs, como consequência directa do abandono americano decretado por
Biden, nomeadamente da perda do auxílio militar aéreo, que se lixem. Que
se preparem para sofrer a tirania sem piedade do fundamentalismo
islâmico e da sharia. A repressão, o assassinato, a violência, a
humilhação, a degradação das mulheres e toda a panóplia de terror que o
fanatismo inventa com indisfarçável prazer. O retorno a uma vida que
ilusoriamente tinham julgado, desde há vinte anos, fazer parte do
passado, retorno que só os americanos poderiam evitar. Nem a
Grã-Bretanha, a única força militar efectiva da Europa ocidental, o
poderia fazer, daí ter sido forçada, com um desprazer que a diplomacia
obrigou Boris Johnson a disfarçar, a seguir a América. Com os Estados
Unidos de fora, tudo o que se pode fazer – e os ingleses, têm sido os
mais vocais nesse aspecto – é acolher os refugiados que chegarão em
massa, tentando escapar ao terror. Mesmo que se seja sensível aos
problemas que a emigração coloca, neste caso particular não pode haver
dúvidas: é mesmo um dever, o único que, depois da catástrofe, podemos
cumprir.
Trump
tinha, é claro, querido tirar as forças americanas do Afeganistão. Como
o tinham querido, antes dele, George W. Bush e Barack Obama. A aliança
internacional, comandada pelos Estados Unidos, que invadiu o
Afeganistão, fê-lo com objectivos precisos e limitados a um tempo que
tinha de ser medido pelo grau de necessidade da sua presença. E Trump
negociou, é verdade, em 2020, uma retirada dos americanos com os
talibãs. Se fez bem ou mal, não sei. Mas lembro que, por cá, Mário
Soares, nos tempos a seguir ao 11 de Setembro de 2001, recomendava
enfaticamente um diálogo com os terroristas. E lembro também que, como
qualquer pessoa pode verificar facilmente, as negociações com os talibãs
estipulavam uma série de condições a serem cumpridas por estes, sem as
quais a retirada das tropas americanas não se verificaria. De resto, o
mais verosímil é que Trump acabasse por não retirar os americanos do
Afeganistão e tivesse dado ouvidos (o que Biden não fez) aos avisos
sobre os riscos da retirada. Quanto mais não seja – e, por uma vez, vale
a pena usar aqueles argumentos psicológicos que abundavam na literatura
jornalística sobre ele –, com medo da humilhação que tal retirada para
ele representaria. Biden, o “homem decente” que toda a gente gostava de
celebrar, não teve esses problemas.
Porque
Biden, lembram-se?, é um “homem decente”. Se tiverem dúvidas, leiam a
vasta literatura lírico-analítica que sobre ele a comunicação social
portuguesa abundantemente produziu, por falta de juízo ou, num caso ou
outro, por pura patetice. Os adjectivos quase faltavam para descrever a
nova maravilha dos nossos tempos, que rompia com o ignominioso passado
recente representado por Trump. America is back! A América boa, a
América dos nossos sonhos e dos nossos desvelos. A América multilateral e
civilizada do diálogo. A América da compaixão. A América com quem a
Europa e o mundo podem contar. A América que desmentirá a legião de
“trumpinhos” – designação que servia para indicar todos aqueles que se
recusassem a aceitar que tudo o que Trump fazia era por definição
perverso e errado – que constituem a “direita radical” portuguesa e
mundial. Se fosse dado a esse estilo (não sou), poderia escrever um
artigo inteiro com a enumeração detalhada de todos os elogios
incondicionais feitos a Biden, com citações que ocupariam páginas e
páginas e com um lamento final, de dedinho em riste, sobre o “silêncio
ensurdecedor” dos seus líricos admiradores face à situação presente.
A
extrema-esquerda, é claro, delira de contentamento com tudo isto,
exibindo a sua costumeira insensibilidade para com o terror e o
sofrimento humano. Yanis Varoufakis, um ídolo seu durante o período da
troika (e não apenas seu como de largas franjas do PS), celebrou o
retorno dos talibãs ao poder como o fim do “imperialismo liberal
neoconservador”, aconselhando perversamente coragem às mulheres afegãs.
Suponho que, no seu espírito, elas devem aceitar todo o horror por que
passarão como as necessárias dores de parto dos magníficos tempos que aí
virão. E o Bloco de Esquerda, juntando a ignorância, a estupidez e o
fanatismo como só ele sabe fazer, convida quem na altura apoiou a
invasão do Afeganistão a fazer um balanço destes últimos vinte anos, que
não fizeram mais do que fomentar o terrorismo: “a invasão ajudou à
exaltação do terrorismo em largas partes do mundo”. De acordo com a
visão sub specie s do Bloco, deduz-se que foi a invasão do Afeganistão
que motivou os ataques de 11 de Setembro de 2001.
De
um outro ponto de vista, e no meio das críticas a Biden de republicanos
e democratas, a extrema-esquerda do Partido Democrata (Ilhan Omar, por
exemplo), na qual muitos ignorantes depositam uma sanguínea esperança
para salvar o mundo, aplaudiu a retirada americana. Este ponto é
importante, porque ilustra uma consonância que contrasta fortemente com a
dissonância a que me referi no início deste artigo. Porque há mesmo uma
consonância entre Biden, o tal “homem decente”, e o Black Lives Matter e
o movimento woke em geral, uma consonância que não se limita à
coreografia do joelho no chão de Kaepernick. E essa consonância
desdobra-se numa outra, a aparentemente paradoxal consonância entre o
movimento woke e os talibãs, que é efectiva para lá da óbvia
desproporção do ponto de vista do terror. É que em ambos os casos, para
lá da comum paixão pela eliminação do passado (não só sob a forma da
destruição das estátuas – lembram-se dos Budas de Bamiyan?), há a mesma
tentativa totalitária de regulamentar, contra o uso comum da liberdade,
todo o comportamento público e privado e toda a linguagem disponível.
Não é por isso surpreendente que não se ouçam, vindas dessas bandas,
quaisquer críticas ao mundo mental dos talibãs. Tal como estes, os
adeptos da wokeness interessam-se apenas na modificação integral da sua
sociedade de acordo com padrões que querem impor, amiúde à força, a
todos os outros. Ambos têm – involuntariamente num caso, voluntariamente
no outro – o apoio do “homem decente” que tanto entusiasmo gerou nos
costumeiros opinantes que se habituaram desde muito cedo, sem vergonha
nenhuma, a respirar as mais absurdas certezas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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