Os advogados em ação no Supremo escancaram a falta que faz o grande jurista. Augusto Nunes para a Oeste:
O
advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto e o poeta Augusto Frederico
Schmidt eram amigos de muitos anos quando conversaram por telefone em 16
de outubro de 1944. Schmidt, além de versos, sabia também fazer
dinheiro como editor, intermediário de transações financeiras e ocupante
de cargos públicos. (Segundo a história oral da literatura brasileira,
seria ele o poeta federal que tira ouro do nariz no poema de Carlos
Drummond de Andrade.) Naquele outubro, foi o empresário Schmidt quem
ligou, para pedir ao jurista que reservasse todo o dia 20 a um só
compromisso: examinar a vasta documentação que lhe permitiria
representá-lo numa questão judicial de natureza trabalhista. O alvo do
pedido ponderou que, para patrocinar a causa, primeiro teria de
verificar se o candidato a cliente tinha razão.
Advogado
não é juiz, replicou um surpreso Schmidt, garantindo a Sobral que
sobrava consistência aos argumentos de que dispunha. O jurista reiterou
que sem exame prévio não poderia aceitar o convite, advertiu que o prazo
era insuficiente para uma avaliação criteriosa e fez a sugestão: melhor
contratar outro profissional. A conversa não terminou bem. Tanto assim
que Sobral decidiu retomá-la na manhã seguinte, por meio de uma carta
datilografada pela secretária. Há alguns anos, Roberto Sobral Pinto
Ribeiro, neto desse jurista admirável, enviou-me cópia do texto ditado
pelo avô. Trata-se de um luminoso jorro de lições sobre o exercício da
profissão que o remetente sempre soube honrar, como comprovam trechos da
aula magna ministrada por Sobral Pinto:
“O
primeiro e mais fundamental dever do advogado é ser o juiz inicial da
causa que lhe levam para patrocinar. Incumbe-lhe, antes de tudo,
examinar minuciosamente a hipótese para ver se ela é realmente
defensável em face dos preceitos da justiça. Só depois de que eu me
convenço de que a justiça está com a parte que me procura é que me ponho
à sua disposição.”
A regra vale também para velhos amigos? Claro que sim:
“Não
seria a primeira vez que, procurado por um amigo para patrocinar a
causa que me trazia, tive de dizer-lhe que a justiça não estava do seu
lado, pelo que não me era lícito defender seus interesses.”
Outros trechos ensinam a proteger os códigos éticos da profissão de socos e pontapés hoje desferidos por operadores do Direito:
“A
advocacia não se destina à defesa de quaisquer interesses. Não basta a
amizade ou honorários de vulto para que um advogado se sinta justificado
diante de sua consciência pelo patrocínio de uma causa. (…) O advogado
não é, assim, um técnico às ordens desta ou daquela pessoa que se dispõe
a comparecer à Justiça. (…) O advogado é, necessariamente, uma
consciência escrupulosa ao serviço tão só dos interesses da justiça,
incumbindo-lhe, por isto, aconselhar àquelas partes que o procuram a que
não discutam aqueles casos nos quais não lhes assiste nenhuma razão.”
A
aula termina com palavras que deveriam ser reproduzidas em bronze nos
pórticos e auditórios das faculdades de Direito do Brasil:
“É
indispensável que os clientes procurem o advogado de suas preferências
como um homem de bem a quem se vai pedir conselho. Orientada neste
sentido, a advocacia é, nos países moralizados, um elemento de ordem e
um dos mais eficientes instrumentos de realização do bem comum da
sociedade.”
O
que teria impedido um jurista desse calibre de se tornar ministro do
Supremo Tribunal Federal? Resposta: o apreço pela coerência e a
obsessiva obediência aos mandamentos éticos que balizaram sua caminhada
até a morte com quase 90 anos, demonstrou Sobral Pinto ao recusar a vaga
no STF oferecida por Juscelino Kubitschek. Eleito em outubro de 1955,
JK teve a vitória contestada pela feroz oposição liderada por Carlos
Lacerda. Previsivelmente, Sobral juntou-se aos que evitaram o
atropelamento da Constituição por vigarices tão caras a chicaneiros e
garantiram a chegada de JK ao poder. O convite formulado no primeiro ano
de governo foi prontamente repelido. A aceitação poderia ser
interpretada como um agradecimento do presidente, explicou o convidado. E
ele deixara claro — sempre recorrendo a uma carta — que apoiara o
presidente em defesa da legalidade presente, não em busca de favores
futuros.
A
falta que faz um Sobral Pinto, vivo sussurrando a mim mesmo desde que o
governo Lula incluiu entre seus efeitos colaterais a expansão da tribo
dos kakays, formada por advogados pagos em dólares por minuto para
espancar a verdade nos tribunais, em artigos nos jornais, em
entrevistas, até nos almoços domésticos. Dependendo do valor dos
honorários, todos tratam de provar por A mais B que o errado está certo.
Aos olhos dos doutores em cinismo, ladrão vira benfeitor, pedófilo se
transforma em pai extremoso, canalha juramentado se torna exemplo de
probidade — por mais hediondo que tenha sido o pecado cometido, todo
cliente é inocente. O Brasil ficaria menos intragável se os bacharéis
que topam tudo por dinheiro fossem merecidamente reduzidos a provas do
crime. Quem contratasse um kakay nem precisaria de julgamento: a escolha
do defensor deixa claro que é culpado.
A
falta que faz um Sobral Pinto, ando dizendo em voz alta diante das
façanhas colecionadas pelo Timão da Toga. Dos dez titulares — ainda não
foi preenchida a vaga aberta por Marco Aurélio Mello —, só o presidente
Luiz Fux foi aprovado num concurso de ingresso na magistratura e
trabalhou como juiz em comarcas no interior do Rio de Janeiro. Os nove
restantes são advogados. Pior: o que dizem e fazem avisa aos berros que
decerto veriam em Sobral Pinto um ingênuo estacionado em algum século
longínquo. Antes da toga, exigiam a absolvição de obscenidades
ambulantes com a veemência de senador romano de cinema. Agora
fantasiados de semideuses, os bacharéis em Direito fazem o diabo para
consolidar a liderança da instituição no campeonato nacional de
impopularidade.
Em
lances individuais ou jogadas coletivas, o time cujo capitão é Gilmar
Mendes reafirma de meia em meia hora que gente incapaz é capaz de tudo.
Por exemplo: soltar os quadrilheiros do Petrolão enquanto pune juízes e
procuradores que enquadraram os envolvidos na ladroagem colossal,
prender sem julgamento deputados e jornalistas, obrigar o Congresso a
instaurar CPIs, promover comícios no Senado ou na Câmara para garantir a
eternização de urnas eletrônicas do século passado, proibir o
presidente da República de indicar os ocupantes de cargos que desde
sempre são preenchidos pelo chefe do Executivo, confiscar do Legislativo
a atribuição de criar, revogar ou alterar os códigos legais, berrar
ofensas a Jair Bolsonaro antes de dormir, sonhar com o impeachment e
acordar gritando que mexer com um ministro do Supremo é mexer com todos.
Reveja
a escalação dos doutores premiados com o empregão perpétuo. Gilmar,
Toffoli, Lewandowski, Kássio e Fachin; Rosa e Carminha; Alexandre e
Barroso. Se qualquer dessas eminências fosse julgada por insolência
megalomaníaca e abuso de poder, Sobral Pinto certamente se ofereceria
para trabalhar de graça como assistente da acusação.
BLOG ORLANDO TAMBOSI


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