Tendo por fim combater o populismo, a disciplina não faz senão defender
uma particular forma de populismo de esquerda. Por esta e por outras, a
Cidadania e Desenvolvimento não devia existir. Artigo do professor Paulo
Tunhas, via Observador, sobre a disciplina ideológico inseria no currículo escolar:
É tão simples quanto isto: a tal disciplina de “Cidadania e
Desenvolvimento” não tem ponta por onde se lhe pegue e não deveria
existir. A obsolescência é nela programada, já que os seus conteúdos – e
chamar-lhes “conteúdos” é um acto de caridade extrema – se limitam a
reflectir o ar do tempo na linguagem esfarrapada que lhe convém. Nunca,
em anos de escrever para o Observador, ao ler o que foi escrito em
jornais sobre o assunto ao qual resolvera dedicar esta coluna, fui
tomado de um tal sentimento de tédio e de pura e simples perda de tempo.
É o que se pode chamar a prova da inanidade pelos seus efeitos: a
vacuidade desperta em nós o sentimento do vazio e, por conseguinte, é
lícito concluir que o vazio deve existir. A “Cidadania e
Desenvolvimento” é o vazio transformado em programa.
O Ministério da Educação encarregou-se logo de mostrar a natureza
deste vazio. A disciplina deve ajudar os alunos a desenvolverem
“competências diversas” destinadas a servirem de base para “uma reflexão
consciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos”,
que, supõe-se, antes eram acessíveis aos alunos por meio de uma algo
misteriosa reflexão inconsciente. Do nada pode-se deduzir tudo, coisa
que não escapou ao cérebro dos funcionários do Ministério: com os
“referenciais de educação” próprios a esta disciplina, “os professores
têm como missão preparar os alunos para a vida, para serem cidadãos
democráticos participativos e humanistas, numa época de diversidade
social e cultural crescente, no sentido de promover a tolerância e a não
discriminação, bem como de suprimir os radicalismos violentos”. A
linguagem utilizada diz tudo sobre a vacuidade a que visa dar voz.
Mas é um vazio mobilado, mesmo muito mobilado. Os “referenciais de
educação” em “áreas não-formais” mobilizados para a transformação
alquímica do nada em tudo são vastos, e, metidos todos no mesmo saco,
compõem uma salada russa perfeita. Munidos de “múltiplas literacias”,
como diz um manifesto a favor da disciplina, que permitem “organizar os
vários conhecimentos numa perspectiva holística”, como diz outro, os
alunos ganharão em “empoderamento” (volto ao primeiro) através de um
saber que engloba: os direitos humanos; a sustentabilidade ambiental; a
interculturalidade; a saúde; a segurança rodoviária; a igualdade de
género; a literacia financeira; a educação alimentar; a actividade
física; a espiritualidade; a estética; a moralidade; a civilidade; o
risco; os media; as instituições e a participação democrática; a
educação para o consumo; o empreendedorismo; o mundo de trabalho; a
sexualidade; a violência doméstica; a cibersegurança; a prevenção dos
fogos florestais; a segurança pura e simples; a defesa; a paz; o
bem-estar animal; o voluntariado; e só Deus sabe que mais.
Pelo que li escrito pela sua pena, João Costa, o secretário de Estado
Adjunto e da Educação, é o homem certo para redigir o grosso tratado
que — numa “perspectiva holística”, é claro — organize estes
“referenciais” de forma definitiva e contribua decisivamente para o
“empoderamento” dos alunos. Isto numa grande síntese filosófica. Porque
não se lhe pede, não se lhe pode pedir, nada de menos, já que o simples
acto de pôr em causa a disciplina de Educação e Desenvolvimento
representa um abrir de portas para um imenso conjunto de males,
nomeadamente: o revisionismo; o terraplanismo; e o criacionismo. Isto
para não falar da liberdade de que passariam a gozar os “assassinos do
estudo da arte, do pensamento filosófico, da física, de algumas
maravilhas da literatura”. Mãos à obra, Dr. João Costa, que a tarefa é
de monta e, face a tão terríveis e iminentes abismos, a sua fortitude é
necessária e imprescindível. Mão dura com os assassinos. Não há tréguas
possíveis com essa gente, se é que se pode chamar gente a grupos
selvagens de anti-cidadãos, apóstolos do “discurso de ódio”, do
“preconceito” e da “discriminação”, para me servir de expressões que se
encontram num pequeno glossário da responsabilidade do seu ministério.
Só assim o “espírito crítico” – expressão que aparece inúmeras vezes
pela mão dos defensores da disciplina – poderá triunfar para todo o
sempre. Como diz uma senhora doutorada em educação, os opositores da
Cidadania e Desenvolvimento só podem, a uma pessoa decente, suscitar
sentimentos algures “entre o pasmo e a indignação”, já que “cavalgam uma
polémica populista” organizada a partir do “programa ideológico da
direita conservadora” que exorbita de “arrogância intelectual”.
Mais do que uma disciplina, é de um “complexo disciplinar” que se
trata de defender. Não resisto a repetir, apesar das poucas linhas de
intervalo, alguns dos elementos desse “complexo disciplinar” elaborado
por um grupo de trabalho criado pelo governo em 2016: os direitos
humanos; a sustentabilidade ambiental; a interculturalidade; a saúde; a
segurança rodoviária; a igualdade de género; a literacia financeira; a
educação alimentar; a actividade física; a espiritualidade; a estética; a
moralidade; a civilidade; o risco; os media; as instituições e a
participação democrática; a educação para o consumo; o empreendedorismo;
o mundo de trabalho; a sexualidade; a violência doméstica; a
cibersegurança; a prevenção dos fogos florestais; a segurança pura e
simples; a defesa; a paz; o bem-estar animal; e o voluntariado.
Individual e conjuntamente, na sua fina articulação dialéctica – como
notou um doutorado em Economia da Felicidade, “vendo esta lista,
percebe-se que ela foi elaborada com rigor” e “os conteúdos aí
desenvolvidos são coincidentes com os determinantes da felicidade
individual e colectiva” —, são eles os objectos da polémica populista
cavalgada pela direita conservadora, que jurou não permitir que se
ensine “os miúdos a não roubar, a não estragar, a não andarem à
pancada”.
É obviamente por pura má-fé que os indivíduos que cavalgam essa
polémica não distinguem – fingem não distinguir — a disciplina visada
das disciplinas, por exemplo, de História ou Português. Não se está
mesmo a ver que a determinação e a coerência dos seus objectos é
exactamente idêntica, tal como é idêntica a sua carga ideológica? Só por
completa ausência de pensamento crítico se podem aqui introduzir
distinções. Enfim, alguma diferença haverá, é verdade. A Cidadania e
Desenvolvimento, à diferença das outras disciplinas, diz um dos
manifestos a favor da disciplina, ajuda os alunos “a distinguir entre o
que é ideologia e o que é conhecimento”, o que não é obviamente coisa de
pouca monta. Longas polémicas passadas encontram-se, se não resolvidas,
pelo menos a caminho de uma solução esclarecedora. Além disso, temos
finalmente a muito desejada oportunidade de introduzir no nosso espaço
conceptual e lexical novas figuras, como por exemplo aquela,
efusivamente saudada por uma Investigadora Principal do Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, de “idadismo”, que muito nos
ajudará a combater o regime ideológico do patriarcado.
Agora a sério. O que este precipitado de disparates, uniformemente
redigido numa linguagem miserável e acéfala, nos mostra em primeiro
lugar é o modo de existência de um mundo puramente fantasmático de
ideologia em que qualquer tentativa de confrontação com a realidade é
exorcizada por meio de encantamentos vocabulares. A ideologia não é
obviamente eliminável de qualquer discurso, mas aquilo a que temos
direito no programa da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento e nas
suas diversas e muito aguerridas defesas é ideologia em estado puro,
imunizada de qualquer contaminação pela racionalidade. Se a coisa não
fosse inteiramente patente, se não saltasse aos olhos – se não furasse
os olhos, como dizem os franceses —, bastaria, para que tal fosse claro,
sublinhar a amálgama inacreditável que constitui a lista dos objectos
da disciplina. Ela ordena-se mais pela lógica do sonho, para falar como
Freud, do que pela lógica do pensamento vígil. Tal amálgama e tal lógica
indiciam claramente uma atitude populista: tudo, por mais distinto ou
contraditório que seja, se encontra ligado e é, portanto, susceptível de
um tratamento conjunto. Nominalmente tendo por fim combater o
populismo, não faz senão defender uma particular forma de populismo de
esquerda. Por esta e por outras, a disciplina de Cidadania e
Desenvolvimento não deveria ser meramente opcional. Pura e simplesmente,
não deveria existir.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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