Caetano Veloso, que jamais foi liberal, abraça definitivamente a
esquerda depois de ter lido o livro do marxista italiano Domenico
Losurdo contra o liberalismo. Pedro Menezes para a Gazeta do Povo:
Caetano nunca foi visto no debate público brasileiro como um liberal,
por motivos compreensíveis: sempre se alinhou à esquerda, num país que
praticamente desconhece a rica tradição dos liberais de esquerda. Poucos
reparam que, nas letras dele, Estados Unidos e Inglaterra aparecem como
grandes referenciais civilizatórios para o Brasil – em contraste com
Chico Buarque, cujo apreço por Cuba é bem conhecido. Ou não era: em
entrevista a Pedro Bial, o famoso compositor baiano anunciou seu
rompimento com o liberalismo e uma inflexão na direção do socialismo.
Já existiam sintomas no ar. Quando Danilo Gentili corria risco de
prisão por passar uma carta do Congresso nas suas “partes íntimas”,
Caetano e sua esposa Paula Lavigne comemoraram nas redes sociais. Poucas
décadas transformaram o autor de “É Proibido Proibir” num defensor da
prisão de quem esfrega papel na própria genital. O tempo, que não faz
bem a todos, aproximou Caetano dos seus carrascos militares.
Dado o histórico de outros gênios baianos, até que poderia ser pior.
Não satisfeito em receber o prêmio Stalin da Paz (sim, isso existia),
Jorge Amado chegou a publicar um livro em homenagem à URSS stalinista –
título: “O Mundo da Paz”. Nele, Stalin é descrito como “mestre, guia e
pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior
general, aquilo que de melhor a humanidade produziu”. Após abandonar o
comunismo, Jorge Amado se aproximou do velho ACM, ex-senador e
governador da Bahia, escrevendo cartas endereçadas a “Mestre Antônio”
que eram lidas em propagandas eleitorais. A genialidade artística,
infelizmente, é uma clássica companheira da estupidez política.
A declaração de Caetano pode ser entendida como um fenômeno pessoal.
Nos últimos anos, a esquerda abraçou o cantor, como sempre fez, enquanto
grupos liberais comandavam campanhas contra o cantor. O MBL, por
exemplo, chamou o músico baiano de pedófilo por conta do seu
relacionamento com Paula Lavigne, iniciado quando ela tinha 13 anos.
Apesar de haver substância intelectual do argumento de Caetano, é
difícil separar suas posições recentes da polêmica familiar.
Segundo o próprio, seu afastamento do liberalismo se deu após a
leitura de Domenico Losurdo, um filósofo e historiador italiano. Num de
seus livros, “Contra-História do Liberalismo”, Losurdo discorre sobre a
proximidade histórica de alguns liberais com o escravismo, racismo,
colonialismo e outras ideias repugnantes. De fato, é impossível negar
que John Locke defendeu a escravidão, assim como Adam Smith foi um
simpatizante do colonialismo. A história do liberalismo é bem menos
limpa do que sugerem seus defensores mais ingênuos.
Por outro lado, falta nuance na descrição de Losurdo, um comunista
desavergonhado. Primeiramente, Locke e Smith eram homens do seu tempo.
Assim como é intelectualmente desonesto julgar o marxismo com base em
críticas anacrônicas sobre os preconceitos de Marx, o mesmo vale para
quem julga o liberalismo com base em críticas anacrônicas sobre um
intelectual do século 17, como John Locke.
Além disso, assim como muitos liberais defenderam a escravidão, o
abolicionismo foi um movimento majoritariamente liberal em grande parte
do planeta, inclusive no Brasil. Assim como a ala conservadora do
Partido Liberal defendia a escravidão, “liberais radicais” como Luís
Gama comandaram o movimento abolicionista. Sendo uma tradição
intelectual mais diversa do que o comunismo, o liberalismo é mais capaz
de abrigar contradições e se renovar a partir de novos paradigmas
históricos.
E este é o ponto fundamental: se liberais foram racistas, escravistas
e colonialistas, o fato é que a democracia liberal foi uma vigorosa
combatente do racismo, do escravismo e colonialismo. O movimento
abolicionista não teria a mesma força sem a imprensa livre ou a
separação de poderes defendida pelos liberais.
Angela Davis, outra comunista desavergonhada, denuncia o racismo a
partir da Universidade da Califórnia. O exemplo de Davis resume a
superioridade moral do liberalismo: nos EUA, uma comunista pode debater
as falhas do liberalismo numa cátedra de universidade pública. Se Milton
Friedman fosse soviético, ele não teria a mesma liberdade.
Como bem escreveu José Guilherme Merquior na abertura de um clássico
ensaio, “o cerne do argumento liberal é a velha lição de Montesquieu:
não basta decidir sobre a base social do poder — é igualmente importante
determinar a forma de governo e garantir que o poder, mesmo legítimo em
sua origem social, não se torne ilegítimo pelo eventual arbítrio do seu
uso”. O liberalismo não é uma doutrina fechada sobre uma concepção
específica do que é o progresso. Na verdade, trata-se de um molde
institucional dentro do qual o progresso deve ocorrer para garantir que
este seja concretizado.
É inegável que, tendo sua origem na burguesia, o liberalismo foi
liderado por humanos que reproduziram preconceitos e más ideias típicos
da sua classe, do seu tempo e espaço. Mas esta é a grande virtude do
liberalismo, ignorada por Caetano e Losurdo: a democracia liberal não
depende dos valores de seus líderes, sendo capaz de regenerar-se através
de um debate público livre e descentralizado.
Este processo de regeneração contínua não pode acontecer numa
ditadura do proletariado. A coletivização dos meios de produção leva,
necessariamente, ao enfraquecimento da imprensa livre, que depende da
propriedade privada. Limites constitucionais são vistos como um
obstáculo na busca da revolução.
É por isto que o liberalismo é maior do que os liberais: as bases de
uma ordem livre permitem que as sociedades liberais se movam e superem
os defeitos humanos de seus criadores. O socialismo, por outro lado, tem
o tamanho dos socialistas. Na ausência de limites constitucionais ao
poder, o arbítrio do poderoso tem maior influência. Não faltam obras
similares à de Losurdo, mas com sinal trocado: “contra-histórias” do
comunismo que descrevem as inúmeras ideias ruins e atrocidades
defendidas por líderes revolucionários.
Há, porém, uma diferença simples entre as consequências dos erros
tipicamente humanos dos líderes de cada movimento políticos. Nos Estados
Unidos, Thomas Jefferson lançou as bases para que as gerações seguintes
derrotassem sua mentalidade escravocrata. Harriet Tubman, Martin Luther
King Jr e muitos outros foram capazes de exercer a própria liberdade
para superar as más ideias dos pais fundadores. O mesmo nunca ocorreu no
socialismo da Europa Oriental, onde vícios de origem jamais foram
corrigidos e resultaram numa sociedade degenerada, tomada pela corrupção
e pelo desprezo às liberdades.
Caetano tem razão quando diz que os liberais também são cheios de
defeitos. Assim são os seres humanos. A força do argumento liberal
reside justamente na sua capacidade de considerar a imperfeição humana e
conter os danos gerados por ela.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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