O coronavírus e a mais recente "revolta da vacina"
A imunização não é apenas questão de proteção individual, mas um pacto entre toda a sociedade. Editorial da Gazeta do Povo:
As dezenas de vacinas que vêm sendo desenvolvidas contra a Covid-19
ainda nem tiveram sua eficácia comprovada e o Brasil já gasta tempo com
duas perguntas sobre o tema: tomar ou não tomar? E o poder público tem o
direito de obrigar alguém a se vacinar contra o coronavírus? Já existe
até projeto de lei na Câmara (o PL 3.982/20) estabelecendo quem terá
prioridade na vacinação, e recentemente o presidente Jair Bolsonaro e o
vice-presidente Hamilton Mourão afirmaram que ninguém pode ser obrigado a
se imunizar.
Com ou sem vacina para o coronavírus, o Supremo Tribunal Federal terá
de enfrentar o tema, e a decisão que tomar terá repercussão geral nos
casos envolvendo crianças, por sugestão do ministro Luís Roberto Barroso
aceita em plenário virtual. Os pais têm o direito de não vacinar os
filhos “com fundamento em convicções filosóficas, religiosas e
existenciais”? O caso concreto que chegou à suprema corte é o de pais
veganos que não aceitam cumprir o calendário obrigatório de vacinação
estabelecido pelo governo para o filho, e que por isso foram alvo de
ação ajuizada pelo Ministério Público. Na primeira instância os pais
venceram, mas a decisão foi revertida pelo Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo. Barroso afirmou que a questão coloca em choque diversos
dispositivos constitucionais: de um lado, a obrigação de Estado e
família garantirem a saúde dos menores e o dever dos pais de assistir e
educar os filhos menores; de outro, a liberdade dos pais na condução da
educação dos filhos e o respeito à liberdade de consciência e crença.
Mas talvez a questão nem seja tão complicada quanto parece nos
tribunais. Isso porque está muito claro que o bem comum é ameaçado
quando brotam novas “revoltas da vacina”. A imunização não é apenas
questão de proteção individual, mas um pacto entre toda a sociedade. Há
várias vacinas que não podem ser aplicadas em determinados grupos –
idosos, gestantes, alérgicos a algum componente da vacina, bebês e
crianças até determinada idade –, mas todas essas pessoas também
precisam ser postas a salvo da doença. Quando todos aqueles que podem se
imunizar o fazem, transformam-se em barreira que impede o vírus ou
bactéria de chegar aos que, por qualquer motivo, não podem se vacinar. É
o que os imunologistas chamam de “imunidade coletiva”. A baixa adesão a
determinada vacina derruba essa barreira natural e coloca em risco a
comunidade, com perigo especial para esses grupos mais vulneráveis.
Está mais que óbvio que a vacinação compulsória atende aos três
critérios do princípio da proporcionalidade, um crivo que sempre
sugerimos e que sempre precisa ser analisado diante de vários tipos de
imposição estatal. O primeiro critério é o da adequação: a medida
permitirá chegar ao fim desejado? É evidente que sim: se todos os que
puderem tomar a vacina o fizerem, a comunidade ficará livre da doença. O
segundo critério é o da necessidade: não há outra forma menos drástica
de atingir o mesmo objetivo? Infelizmente não: ainda que haja uma
campanha maciça de conscientização e alta adesão à vacinação voluntária,
se ela não for total continuará havendo brechas por onde as doenças
podem se instalar em uma comunidade. Por fim, a razoabilidade ou
proporcionalidade em sentido estrito: as vantagens superam as
desvantagens? Aqui nem há o que comparar, quando o preço para se livrar
(e livrar o país) de uma doença é o incômodo de uma picada de agulha.
A conclusão que tiramos daí pode surpreender muitas pessoas que
conhecem a defesa firme que fazemos da liberdade: ao passar pelo crivo
da proporcionalidade, consideramos legítima não apenas a vacinação
compulsória para crianças – pois opção de um pai que não vacina um filho
é irresponsabilidade que atinge um terceiro, muitas vezes incapaz de
falar por si mesmo –, mas também campanhas de imunização obrigatória
para adultos. Não há como argumentar que, no caso de adultos, trata-se
de opção que diz respeito apenas a si mesmo. Como lembramos, a pessoa
que poderia se imunizar, mas não o faz pode ser porta de entrada que
leva a doença a muitos outros que estão impossibilitados de tomar a
vacina. Quando alguém se torna potencialmente um risco à saúde pública, a
dimensão comunitária prevalece sobre a liberdade individual.
Resta a possibilidade de alguém recusar a vacinação alegando objeções
de consciência (no caso do coronavírus, há questões ligadas, por
exemplo, ao uso de linhagens celulares de bebês abortados, o que é
admitido pelos próprios laboratórios fabricantes), mas essa pessoa
precisará, então, estar pronta para arcar com as consequências de sua
escolha. Ainda que essa objeção seja oficialmente reconhecida e livre o
objetor de penas legais como multa ou prisão, ele continuará sujeito a
outros tipos de punições, como a rejeição social da parte dos demais e a
vedação de alguma atividade que poderia ser realizada em outras
circunstâncias – é perfeitamente legítimo, por exemplo, que um país
negue a entrada de visitantes que não estão protegidos contra certa
doença; o caso mais comum é o da febre amarela, e não seria irreal
imaginar que a exigência se repita em relação à Covid-19.
Se é assim, o que explica as manifestações de Bolsonaro e Mourão,
repetidas até mesmo em canais institucionais como as mídias sociais da
Secretaria de Comunicação da Presidência da República? Se descartarmos
uma hipotética adesão de Bolsonaro a teorias da conspiração que
proliferam pela internet, com alegações das mais insanas a respeito das
vacinas contra o coronavírus, só resta a possibilidade de que o
presidente estaria se guiando por uma convicção errônea a respeito de
liberdades individuais. Errônea porque, embora seja regra geral que a
liberdade tem de ser defendida, isso não pode ser feito colocando-se em
risco o bem comum. Este é o cálculo que Bolsonaro não faz quando se
pronuncia sobre a vacina, mas que ele mesmo aceitou quando sancionou a
Lei 13.979/20, que, em seu artigo 3.º, III, a, afirma que “as
autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre
outras, as seguintes medidas: (...) determinação de realização
compulsória de: (...) vacinação e outras medidas profiláticas”.
Esperamos que a importância da saúde pública como bem que deve ser
preservado acima das convicções individuais a respeito das vacinas seja
reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal quando for analisar o caso dos
pais veganos, o que ainda não tem data para ocorrer. Quanto ao
coronavírus, ainda é cedo para saber quando haverá vacina, qual será sua
capacidade de proteção (por exemplo, se bastará uma dose ou se ela terá
de ser renovada periodicamente, como as vacinas contra a gripe), quais
grupos não poderão tomá-la e se o poder público a tornará obrigatória em
algum momento, para crianças ou para adultos. Todos os brasileiros,
independentemente de preferência política, concordam que é preciso
livrar o país da Covid-19 o quanto antes. O tempo que teremos até chegar
esse dia tão aguardado será melhor gasto se todos se dedicarem a
compreender melhor o papel do Estado e dos cidadãos em busca deste
objetivo comum, em vez de bombardear por antecipação uma esperança de se
apressar o fim da pandemia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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