O homem que pretendeu introduzir o "método dialético" nas ciências (ciência e dialética são absolutamente incompatíveis) devastou a agricultura soviética, levando a população à fome. Tiago Cordeiro para a Gazeta do Povo:
Selecione
um jovem do povo, sem pesquisas acadêmicas relevantes, para conduzir o
departamento de genética de um país inteiro de 170 milhões de
habitantes. Permita que ele desenvolva um raciocínio pseudocientífico,
sem nenhuma base em fatos. Mande para campos de trabalho forçado e
manicômios os pesquisadores que discordarem dele.
Na
sequência, com base nos conceitos desse jovem do povo, force uma
mudança nos métodos centenários de plantio. Exporte esses métodos para
um país vizinho, com 550 milhões de habitantes, também controlado por
uma ditadura. E pronto: você tem a receita para matar de fome milhões de
pessoas – só na China, foram 35 a 45 milhões de vítimas.
O
jovem em questão foi Trofim Denisovich Lysenko. Nascido em 1898, na
atual Ucrânia, ele se tornou diretor do Instituto de Genética da
Academia de Ciências da União Soviética em 1940, mas suas ideias já
vinham sendo implementadas ao longo da década anterior.
Com
o apoio explícito de Josef Stalin, Lysenko eliminou seus adversários e
implementou um programa de reforma agrícola desastroso, que seria
posteriormente exportado para a China de Mao Tsé-Tung.
Lamark contra Mendel
Filho
de camponeses, analfabeto até os 13 anos, Lysenko estudou no Instituto
de Agricultura de Kiev, onde começou a pesquisar os efeitos das
variações de temperatura sobre os ciclos das plantas. Seu objetivo era
permitir que o trigo que costumava ser plantado na primavera resistisse
ao inverno, de forma a garantir a produção de alimentos ao longo do ano
inteiro. Seus primeiros estudos chamaram a atenção de outro pesquisador
mais experiente, Nikolai Vavilov, que decidiu orientar os trabalhos de
Lysenko.
Em
1928, o aluno veio a público com a promessa de que havia encontrado,
sozinho, uma forma de implementar o plantio de diferentes plantas em
qualquer estação do ano. Lysenko passou a defender que uma série de
técnicas, somadas, eram mais eficazes do que as recombinações genéticas
que vinham sendo testadas por agrônomos do mundo inteiro, com base na
redescoberta dos trabalhos do frei Gregor Mendel.
Mendel,
nascido em 1822 e falecido em 1844, deixou escritos que, no século 20,
influenciariam o campo da genética e suas aplicações práticas para uma
série de atividades, incluindo a agricultura.
O
agrônomo preferia utilizar métodos que, na prática, reduziam a
produtividade das plantas, como o uso excessivo de enxertos e a
exposição de sementes a baixas temperaturas, antes do plantio.
Em
outras palavras, ele recusava os avanços apresentados por Mendel em
nome da noção definida pelo naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck,
morto em 1829, que defendia que as características adquiridas durante a
vida eram repassadas para as gerações futuras.
Para
Lysenko, a genética era uma “pseudociência burguesa”, porque ia contra
os princípios marxistas-leninistas de que as leis que regem a história
são universais e imutáveis.
Nisso,
ele contava com o apoio de Stalin. “Stalin detestava a genética. Ele
dizia não acreditar na genética como era estudada no Ocidente, pois a
considerava uma ciência burguesa, que não estaria de acordo com o
materialismo dialético. Não por acaso, ele autorizou seu verdugo
científico, Trofim Lysenko, a tornar a genética mendeliana ilegal na
URSS”, afirma Daniel Fernandes, professor de história, coordenador
editorial da editora Arcádia e organizador do livro O elogio do
conservadorismo e outros escritos.
Técnicas questionáveis
Alguns
dos métodos do pesquisador, como o de resfriar ou aquecer as sementes
para que elas ficassem preparadas para solos adversos, já eram
conhecidos na Europa desde o século 19, e eram considerados limitados
pelos produtores rurais. Outros, como a recomendação de plantar as
sementes mais próximas entre si, duas a duas, para que uma desse suporte
à outra, simplesmente não funcionavam.
Ao
longo da década de 1930, enquanto a União Soviética provocava uma
grande crise de abastecimento na Ucrânia que levaria ao Holodomor, a
coletivização da produção agrícola soviética era implementada seguindo
práticas preconizadas por Lysenko, que passou a ganhar amplo espaço
junto a Stalin.
Foi
também por influência do agrônomo que o ditador proibiu o uso de
qualquer tipo de herbicida e fertilizante na agricultura soviética, sob a
alegação de que as plantas seriam capazes de aprender sozinhas a se
fortalecer e se defender de pragas.
Em
1935, o agrônomo discursou no Kremlin, alegando que os pesquisadores
que se apegavam à genética eram semelhantes aos fazendeiros que
resistiam a ceder suas terras ao Estado. Ao fim de sua fala, Stalin, que
estava presente, se levantou e aplaudiu, gritando: “Bravo, camarada
Lysenko, Bravo!”.
Em
1948, Lysenko conseguiu que a Academia de Ciências Agrícolas da União
Soviética, que ele mesmo presidia desde 1938, declarasse que sua teoria
era a única correta, e que qualquer pesquisa que questionasse o chamado
Lysenkoísmo deveria ser renegada. “A influência de Lysenko foi tão
grande que qualquer referência aos cromossomos foi banida dos livros
didáticos”, diz Daniel Fernandes.
Na mesma época, o americano Norman Bourlaug iniciava a chamada Revolução Verde, que salvou da fome mais de 1 bilhão de pessoas.
Perseguição e fome
Os
efeitos da adoção do pensamento de Lysenko foram catastróficos. Mais de
3 mil pesquisadores foram presos e levados para gulags ou manicômios.
Nikolai
Vavilov, o antigo professor de Lysenko, e primeiro presidente da
Academia de Ciências Agrícolas da União Soviética, se recusou a abrir
mão de suas pesquisas.
Vavilov
havia viajado para 64 países, incluindo o Brasil (onde esteve entre
dezembro de 1932 e janeiro de 1933), coletando sementes e desenvolvendo
técnicas de plantio com base na observação das variedades que encontrou
em todo o planeta. Acabou preso em 1940, acusado de provocar a escassez
de alimentos que era, na verdade, resultado da política de Lysenko.
Depois
de passar a vida buscando soluções para melhorar a produtividade do
plantio, Vavilov morreu de fome em um campo de trabalho forçado, em
1943. Seu trabalho pioneiro, que indicou que todas as maiores variações
genéticas de uma determinada espécie de planta são encontradas nos
locais onde ela se desenvolveu pela primeira vez, ainda hoje funciona
como referência para pesquisadores do mundo todo.
Como
escreveu em 2001 o geneticista russo Valery N. Soyfer, no artigo The
consequences of political dictatorship for Russian science, “os líderes
comunistas promoveram Trofim Lysenko e impuseram o banimento da prática e
do ensino da genética, condenada como ‘perversão burguesa’. A ciência
russa, que havia florescido no início do século, sofreu um rápido
declínio, e muitas descobertas científicas valiosas realizadas por
pesquisadores russos foram esquecidas”.
Na
medida em que os geneticistas eram silenciados, a União Soviética
expandia as técnicas de Lysenko para outros locais, incluindo a Alemanha
Oriental e a Tchecoslováquia. Mas foi na China que a combinação de
coletivização da produção agrícola e o Lysenkoísmo provocaram o maior
número de mortes. Entre 1958 e 1962, a Grande Fome resultante da reforma
agrícola conduzida na China transformou Mao no maior assassino em massa
da história mundial, segundo o historiador Frank Dikotter.
Coletivização forçada
As
ações de Lysenko foram implementadas como reforço a uma política de
abandono das ações individuais dos fazendeiros russos. “A coletivização
forçada do campo foi uma guerra declarada pelo Estado soviético contra
toda uma nação de camponeses bem sucedidos. Foi uma ação contra o setor
mais próspero dos camponeses. Com o tempo, o processo inteiro
transformou-se em guerra contra os camponeses em geral”, diz o professor
Daniel Fernandes.
“Com
a coletivização forçada do solo agrícola, a produção de grãos entrou
imediatamente em declínio, logo seguida por acentuada queda na criação
de gado. A iniciativa congênita do camponês foi cortada pela raiz, com
sérias e inevitáveis consequências”.
Diante
do fracasso da política, diz o professor, “Stalin reagiu ao desastroso
fracasso de seu plano de gestão agrícola tratando de encontrar um
culpado. Acusou os funcionários do partido, afirmando que não haviam
entendido corretamente as instruções que receberam”.
Lysenko
acabaria perdendo espaço com a morte de Stalin, em 1953. Depois que o
sucessor do ditador, Nikita Kruschev, denunciou os crimes do stalinismo,
o agrônomo foi mantido na direção da Academia de Ciências Agrícolas da
União Soviética, mas agora com atuação mais discreta.
Em
1964, Lysenko foi abertamente denunciado pelo físico Andrei Sakharov:
“Ele é responsável por um recuo vergonhoso da biologia soviética, e da
genética em particular, provocado pela disseminação de uma visão
pseudocientífica”, escreveu.
O
agrônomo perdeu o cargo em 1965, quando a imprensa controlada pelo
Estado passou a publicamente criticar seu trabalho e caracterizá-lo como
pseudociência. Foi só então que as pesquisas russas sobre genética
puderam ser retomadas. Ao morrer, em 1976, Trofim Lysenko recebeu um
enterro discreto.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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