A missão, diz o pedagogo revolucionário da USP, é “conscientizar os
futuros professores de Matemática de sua tarefa como intelectuais
orgânicos a serviço da construção da hegemonia dos excluídos”. Flavio
Gordon, via Gazeta do Povo:
“A pedagogia, como é hoje considerada, está desligada do saber,
pretende substituí-lo e ocupar o seu lugar. A ‘pedagogia’ tem um aspecto
social: atrai o intelectual proletaroide, prometendo-lhe uma revanche
contra o competente e o sábio”.
– Alain Besançon, prefácio de A Escola dos Bárbaros, de Isabelle Stal e Françoise Thom (1985)
– Alain Besançon, prefácio de A Escola dos Bárbaros, de Isabelle Stal e Françoise Thom (1985)
No último Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa),
aplicado em 2018 e divulgado em dezembro do ano passado, o Brasil ficou
na 70.ª colocação entre 79 participantes da avaliação de matemática e
raciocínio lógico. Como se lê em editorial desta Gazeta do Povo: “Em
Matemática, quase sete em cada dez estudantes estão no pior nível de
proficiência, sendo incapazes de realizar algumas tarefas básicas que
envolvem números e operações aritméticas”. Na época da divulgação, o
presidente do Inep, Alexandre Ribeiro Lopes, chegou a dizer que “a
educação brasileira produz excluídos: 68% dos jovens de 15 anos não
sabem o básico de matemática”.
Mas esse que, do ponto de vista dos pais e da sociedade em geral, é
sem dúvida um resultado alarmante, não parece sê-lo da perspectiva de
uma certa pedagogia “crítica” e “progressista”, cuja concepção da
matemática e de suas funções é bastante peculiar. A fim de melhor
compreender essa concepção – não apenas peculiar, mas também esdrúxula,
já adianto –, podemos recorrer ao conceito de “erro categorial”
(category-mistake), do filósofo Gilbert Ryle (1900-1976). Comete-se um
erro categorial quando se atribui a um ente qualquer uma propriedade
ontologicamente incompatível com a natureza desse ente.
Ilustrando a ideia, o filósofo pede-nos para imaginar uma pessoa
comum, pouco afeita ao universo acadêmico, visitando Oxford pela
primeira vez. Chegando lá, pergunta sobre a localização exata da
universidade, imaginando vir a obter uma resposta do tipo: “É logo ali,
ao lado da sala dos professores”. Ao conceber a universidade como uma
edificação específica, e não como o conceito funcional que engloba todas
as suas partes, a pessoa em questão teria cometido um erro categorial.
As crianças são mestras na produção de divertidíssimos erros
categoriais. Temos um erro categorial clássico quando, por exemplo, um
pequeno queixa-se a um móvel no qual acabou de bater a cabeça: “Mesa
malvada!”. Ou quando indaga: “Qual é o gosto da cor verde?”, “Qual é a
cor do seu nome?”, etc.
Nas crianças, o erro categorial faz parte do desenvolvimento
cognitivo natural. Já em adultos, o fenômeno pode indicar certo lapso de
inteligência, embora homens intelectualmente brilhantes não lhe sejam
imunes (como, para Ryle, era o caso de Descartes). Ressalve-se, claro,
que o erro categorial só se caracteriza no âmbito do discurso literal,
denotativo. O uso consciente e figurado de “más” atribuições de
propriedade não constitui erro algum, evidentemente.
Mas, voltando ao nosso assunto, gostaria de falar de um erro
categorial tragicômico: a matemática opressora. Sim, num Brasil tomado
por aquele marxismo “volatilizado e atmosférico” de que falava Nélson
Rodrigues, era fatal que chegássemos até esse ponto. E o pior: o erro
não parece ser fenômeno isolado, muito menos escandaloso. Ao contrário,
cometê-lo, cá em Pindorama, pode conferir a quem o faz o título de
doutor nas nossas principais universidades.
A matemática opressora é, por exemplo, o tema de uma tese de
doutorado defendida na Faculdade de Educação da USP, cujo resumo
transcrevo na íntegra:
“Nossa investigação é uma pesquisa teórica de cunho
histórico-filosófico-educacional, que tem como objetivo principal
discutir as contribuições de Paulo Freire e de Ubiratan D’Ambrosio para a
formação do professor de Matemática no Brasil. A dialética e as
técnicas de análise de conteúdo constituem a metodologia adotada. Desse
modo, nos impusemos como tarefa analisar a formação do professor de
Matemática de modo contextualizado com a nossa realidade social atual e
reconstituindo a função histórica que a nossa escola e a formação
docente desempenharam como reforçadora das desigualdades sociais e
mantenedoras do status quo da sociedade capitalista. No levantamento
histórico, utilizamos as contribuições de G. Freyre, S. B. de Holanda,
C. Prado Júnior, L. Basbaum, C. Furtado, F. de Azevedo, J. K. Galbraith,
O. de O. Romanelli, A. Teixeira, entre outros. E, em nossa análise, nos
valemos das contribuições de K. Marx, F. Engels, A. Gramsci, M. Chauí,
L. Althusser, J. Contreras, O. Skovsmose, A. Ponce, M. Gadotti, K. Kosik
e outros referenciais próprios da área. A formação do professor de
Matemática é vista como resultado de um processo histórico-cultural que
mantém ainda uma forte herança de elementos de uma sociedade colonial,
corroborado pela não participação democrática do povo brasileiro em seu
processo de constituição sociocultural numa sociedade capitalista e
excludente. E o trabalho demonstra que os atuais processos de formação
de professor de Matemática ainda são fortemente sedimentados numa
formação alienada aos ditames de uma sociedade de classes, que não
permite ao futuro professor compreender e fazer uso da necessária
autonomia inerente à sua atuação, o que o faz atuar como um intelectual
orgânico a serviço da consolidação da hegemonia da classe dominante.
Nesse sentido, os constructos teóricos de P. Freire e de U. D’Ambrosio
mostram-se como indicadores de encaminhamentos possíveis no processo de
formação de um professor de Matemática crítico/libertador e, por isso,
consciente de sua tarefa como agente ativo na formação de um educando
não especialista em matemática, mas inserido em sua realidade social
como um sujeito transformador e em transformação, que encontra na
matemática uma ferramenta para o processo dialético de sua própria
construção. Assim, a investigação indica a necessidade de uma atuação
dos formadores no sentido de conscientizar os futuros professores de
Matemática de sua tarefa como intelectuais orgânicos a serviço da
construção da hegemonia dos excluídos, dos explorados em geral. Ou seja,
a investigação aponta a necessidade de a formação inicial se constituir
como um antidiscurso ao discurso ideológico da classe dominante.”
(grifos meus).
Temos aí um exemplo típico de trabalho acadêmico que pedagogos e
educadores de esquerda têm, há décadas, produzido no Brasil. São pessoas
como o seu autor as que ditam, na prática, os rumos de educação,
ocupando posições importantes no sistema educacional. São elas que
formam os professores brasileiros e, portanto, deformam a inteligência
dos nossos estudantes.
Evidentemente, os objetivos educacionais desses pedagogos
revolucionários não são os mesmos que os do restante da sociedade. E
reside aí, talvez, o principal problema da educação brasileira, que
precisamos começar a compreender e enfrentar: enquanto a sociedade
espera que os professores ensinem aos estudantes Matemática, Português e
Ciências, muitos dos profissionais que formam os professores não estão
interessados em nada disso. Essas disciplinas servem-lhes apenas como
meios para a doutrinação de crianças e jovens no discurso comunista (em
versão gramsciana-freiriana) da luta de classes. “A pedagogia é a
propedêutica do socialismo”, escreve acertadamente Alain Besançon no
texto referido em epígrafe.
Que assim seja o confessa o próprio pedagogo da USP, para quem sua
missão, não custa repetir, é “conscientizar os futuros professores de
Matemática de sua tarefa como intelectuais orgânicos a serviço da
construção da hegemonia dos excluídos”. E você aí, ingênuo leitor,
pensando que a tarefa do professor de Matemática fosse ensinar a fórmula
de Bhaskara...
Escreve Ortega y Gasset em Misión de la Universidad (1930):
“Princípio de educación: la escuela, como institución normal de un país,
depende mucho más del aire público en que íntegralmente flota que del
aire pedagógico artificialmente producido dentro de sus muros. Sólo
quando hay ecuación entre la presión de uno y otro aire la escuela es
buena”.
No Brasil contemporâneo, há um desencontro total entre o “ar público”
e o “ar pedagógico” artificialmente produzido dentro dos muros
escolares. Logo: acá la escuela no es buena. A sociedade como um todo
optou por abdicar da educação infantil, delegando a missão para os
especialistas em pedagogia, e conferindo a estes um prestígio (e, logo,
um poder) totalmente imerecido e desproporcional. Todos parecem
concordar com a fórmula mágica “mais verba para a educação!”, desatentos
para o fato de que isso implica mais pedagogia – e, portanto, menos
Matemática, Português, Ciências e demais disciplinas “opressoras”.
Lavamos as mãos, confiando que a meta dos especialistas correspondia
aos nossos anseios. Erramos gravemente, e é preciso reconhecê-lo com
urgência. Temos de acabar com o monopólio que a “falsa ciência” da
pedagogia crítica, nos dizeres de Besançon, exerce sobre a educação
brasileira. Até lá, talvez a proposta de “mais verba para a educação”
não seja, de fato, uma boa ideia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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