O problema do pensamento utilitarista é que ele assaz flexível. João Pereira Coutinho, via FSP:
Quando os recursos são escassos, quem deve receber tratamento
intensivo durante a Covid-19? A pergunta, que habitava os livros de
filosofia moral, passou a ocupar os cálculos médicos em todo o mundo.
Devemos salvar os jovens e sacrificar os velhos? Devemos salvar os
saudáveis e abandonar os doentes? Nada é assim tão fácil. Mas, quando o
desespero aperta, o cálculo utilitarista é a primeira arma. Na Itália,
no meio de uma inimaginável catástrofe, doentes com mais de 60 anos não
foram, digamos, “prioritários”.
Existem outros critérios. No Reino Unido, o National Institute for
Health and Care Excellence publicou um guia em que distribui as
potenciais vítimas em nove níveis. No primeiro nível estão os “very
fit”, gente atlética. No último estão os doentes terminais, o que
permite imaginar que, em caso de necessidade, eles serão os primeiros a
cumprir o seu dever para com a sociedade.
Quando olhei para a tabela, tentei me situar na cadeia alimentar.
Honestidade? Quando a pandemia começou, era um caso típico de nível dois
(“well”, sem doenças crônicas, excetuando as mentais). Hoje, com mais
uns quilos e uma sensação de atrofia geral, estou no três (“managing
well”), já a espreitar o quatro (“vulnerable”). Cuidado, Coutinho. A
partir do nível cinco (“moderately frail”), entram os cálculos
utilitaristas em jogo.
Longe de mim criticar esses cálculos. Pelo contrário: agradeço a
todos os santos não estar na linha de frente, a calcular a vida dos
outros. Embora, aqui do meu canto, a pergunta seja inevitável: será
possível calcular a vida dos outros?
Entendo a lógica utilitarista: garantir a maior felicidade para o
maior número significa que gente jovem e saudável terá mais anos de vida
do que um velho rezinga com coração preguiçoso. Como dizem os lusos,
não vamos desperdiçar cera com tão ruim defunto.
O problema do pensamento utilitarista é que ele é assaz flexível.
Serve para medir jovens contra velhos. Mas também pode ser aplicado a
pobres e ricos. Se a ideia luminosa é maximizar a felicidade do maior
número, por que não escolher salvar um cidadão rico, que contribui para a
comunidade gerando empregos e pagando impostos, sacrificando um cidadão
pobre, que é apenas um encargo para todos?
Mas o problema do pensamento utilitarista não está apenas na
possibilidade de gerar situações moralmente repulsivas como essa. O
utilitarismo tende a ser cego para questões intangíveis, que não são
facilmente mensuráveis.
Retorno ao hospital. Retorno ao jovem e ao velho. Por que motivo devo
salvar um jovem com um historial de delinquência e abandonar um velho
com uma conduta exemplar? E se o velho em questão tiver família que
depende dele, ao contrário do jovem? E se o velho for médico, artigo
raro em situação de pandemia? E se for um grande artista? A idade não
encerra o debate. O valor moral ou intelectual de uma pessoa pode ser
mais importante do que o ano em que ela nasceu.
Já sei, já sei: existe uma forma aparentemente neutra de fazer
escolhas trágicas. Familiares médicos, confrontados com as minhas
divagações, usaram a bomba atômica: devemos dar prioridade a quem tem
mais hipótese de sobrevivência. Ponto final. Não interessa se é jovem ou
velho, criminoso ou santo, analfabeto ou sábio. É o corpo que manda.
Esmagado com tanta sapiência, desisti: como negar esse determinismo
do corpo? Bom, talvez lembrando que, no mundo real, a escolha não é
entre corpos saudáveis e corpos putrefactos. Exemplo: dias atrás,
informava o Guardian que, no Reino Unido, ventiladores que estavam sendo
usados por pacientes estáveis e até com ligeiras melhorias foram
removidos para socorrerem outros doentes com probabilidades de
sobrevivência maiores. Eis um caso em que os médicos trocaram provas
tangíveis de progresso por uma probabilidade teórica de sucesso.
Repito: agradeço a todos os santos não estar na linha de frente para
fazer essas escolhas. Porque elas são agônicas, trágicas e, ao contrário
do que afirmam os utilitaristas, incomensuráveis. Os valores em
confronto podem ser tão radicalmente distintos que não há uma solução
mágica para o dilema.
Da minha parte, tudo o que posso fazer é começar uma dieta,
experimentar a esteira elétrica e tentar voltar ao nível dois. Meu
objetivo é tornar mais difícil a escolha difícil dos médicos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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