Qualquer movimentação de tropas é menos assustadora que uma conversa em
voz baixa entre Gilmar Mendes e Rodrigo Maia. Augusto Nunes, via Oeste:
O presidente da República é um milico de carteirinha, tem como vice
um general e governa em sintonia com oficiais instalados em cargos
estratégicos. Por que tantos militantes que votaram em Jair Bolsonaro
seguem empunhando a bandeira da “intervenção militar”? Estariam
insatisfeitos com o desempenho do chefe de governo e seus ministros
fardados? Nada disso, informam os comandantes da tropa de soldados à
paisana. Todos querem que Bolsonaro e o grupo que trocou a farda
verde-oliva pelo terno cinza-planalto permaneçam onde estão. Mas exigem
que o Congresso e o Superior Tribunal Federal sejam varridos da Praça
dos Três Poderes. Removidas as pedras do caminho, e com o apoio
explícito e incondicional do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e do
Povo, Bolsonaro enfim daria um jeito no Brasil.
Os intervencionistas são primos-irmãos dos devotos da seita que tem em Lula seu único deus.
“Um dos nossos grandes erros foi não ter promovido militares
simpatizantes do PT”, confessou José Dirceu entre uma temporada na
cadeia e uma sequência de bandalheiras gerenciadas pelo guerrilheiro de
festim que virou facilitador de negociatas. Nas fantasias do capitão do
time de Lula, expulso de campo por jogadas criminosas, a existência de
coronéis e generais petistas poderia ter transformado Lula num Hugo
Chávez dispensado de estudar em colégios militares. Ou, por que não?,
num Fidel Castro poupado de tiroteios e do desconforto da vida na mata.
(Dirceu sempre chorou nos reencontros com Fidel Castro. Mas o choro
ficava mais sentido quando Fidel aparecia com o uniforme de comandante.)
Em 2005, no discurso em que formalizou a entrega da Casa Civil a
Dilma Rousseff, Dirceu evocou os tempos em que declararam guerra ao
governo militar. “Minha companheira de armas”, fantasiou na saudação à
sucessora. Nenhum dos dois jamais disparou uma bala de verdade — ela
porque nunca foi além do apoio logístico aos grupos de ação, ele por ter
optado pela rendição preventiva. Mas ambos capricham na pose de
guerreiro várias vezes condecorado por demonstrações de bravura em
combate, e fazem de conta que serão os primeiros a liderar batalhões
imaginários. O “exército do Stédile”, por exemplo. Ou o “exército da
CUT”, há muito tempo entrincheirado em algum grotão do Brasil. É natural
que sonhem com a adesão de tropas de verdade. E teimem em enxergar nos
chefes militares de 2020 os generais de 1964.
Nada a ver, confirma a reação dos oficiais graduados à manifestação
ocorrida neste 19 de abril nas imediações do Quartel-General do
Exército, em Brasília, com a participação do presidente da República.
Bolsonaro não incluiu em seu discurso nenhuma das palavras de ordem,
berradas pela minoria dos participantes, que exigiam o fechamento do
Congresso e do Supremo. Mas só as renegou no dia seguinte. Generais da
reserva mal camuflaram o desconforto causado pela escolha do local do
ato político. Militares da ativa não viram nada de mais — nem no cenário
da manifestação nem nas bandeiras desfraldadas por correntes radicais.
Se o evento aconteceu ali, deduziram oficiais graduados, certamente fora
autorizado pelo comandante do Exército. Todos reiteraram o mantra: o
Exército se limita às atribuições estabelecidas pela Constituição.
Tradução:
56 anos depois do confronto de 1964, as Forças Armadas são essencialmente profissionais.
Não foi assim enquanto existiu o Partido Verde-Oliva, surgido na
década de 1920 na esteira das ações políticas da mais impetuosa e
politizada geração de tenentes. Divididos em alianças cuja composição
obedecia às circunstâncias e conveniências, os líderes do movimento
tenentista desempenharam papéis relevantes na Coluna Prestes, na
Revolução de 1930, no parto e na agonia do Estado Novo, nas eleições
presidenciais que se seguiram ao fim da ditadura, na crise que levaria
Getúlio Vargas ao suicídio, nos barulhos que marcaram a eleição e a
posse de Juscelino Kubitschek, na renúncia de Jânio Quadros, na
deposição de João Goulart e na instauração do regime militar de 1964. Ao
longo desse período, os antigos tenentes criaram a figura do militar
anfíbio, que podia usar alternadamente o terno de governante civil e a
farda de comandante de tropas.
Até sair de cena como marechal, o tenente Oswaldo Cordeiro de Farias
foi interventor do Rio Grande do Sul de 1938 a 1943, um dos comandantes
da FEB na Segunda Guerra Mundial em 1944, comandante do III Exército em
1949 e governador eleito de Pernambuco entre janeiro de 1955 e novembro
de 1958. Novamente nomeado para o comando do Exército durante o governo
Jango, nem chegou a assumir o posto. Engajado na conspiração que seria
vitoriosa em 1964, foi incorporado ao alto escalão do presidente
Castello Branco como ministro do Interior. A primeira reunião do
ministério juntou Cordeiro de Farias aos velhos companheiros Eduardo
Gomes (candidato à Presidência em 1945 e em 1950), Juarez Távora
(candidato à Presidência da República em 1955) e Juracy Magalhães (que
chegou como interventor ao governo da Bahia e voltou duas vezes ao cargo
pelo voto popular).
O processo de modernização das Forças Armadas incluiu a extinção dos anfíbios, decretada por Castello Branco.
Mas os remanescentes do tenentismo continuaram em ação. E coube a um
deles, Ernesto Geisel, planejar e conduzir a “abertura lenta, gradual e
segura” que, ao fim do mandato de João Figueiredo, encerrou o ciclo dos
generais-presidentes, ressuscitou o regime democrático e afastou as
Forças Armadas do desgastante monopólio do poder. Nos anos seguintes,
generais que eram adolescentes ou nem haviam nascido em 1964 ensinaram a
sucessivas gerações de cadetes que política não rima com quartel. Hoje,
o típico militar brasileiro se concentra na missão de preservar a
integridade do território nacional e garantir a lei e a ordem
constitucional. Quem gosta do tiroteio eleitoral abandona a caserna a
vai à luta.
Só não sabe disso (ou finge não saber, o que dá na mesma) gente que
vê o começo da reprise de 1964 quando ouve o toque de clarim que abre
uma parada militar. Para esses, o passado não passa. A essa tribo
pertencem jornalistas que consumiram parte da vida consultando, coração
em descompasso, a dança das estrelas no Almanaque do Exército. Eles
recitavam os nomes dos generais de exército — possíveis presidentes da
República, portanto — com mais segurança que a demonstrada quando
instados a escalar o ataque do Santos de Pelé. Hoje, não chegam a cem os
inscritos no Enem que sabem quem é o comandante da Aeronáutica. Mas até
cretinos fundamentais conhecem os presidentes da Câmara e do Senado, e
soletram nome e sobrenome dos onze ministros do Supremo que atuam no
time da toga. Olho neles. Qualquer movimentação de tropas é menos
assustadora que uma conversa em voz baixa entre Gilmar Mendes e Rodrigo
Maia.
blog orlando tambosi

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