O governo é o principal responsável por fragilizar progressivamente a si
mesmo a ponto de chegar a estes tristes dias ofertando cargos a
parlamentares condenados no mensalão e no petrolão. Artigo de Lucas
Berlanza para o Instituto Liberal:
A essa altura, talvez seja desnecessário emoldurar todas as acusações
que o agora ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro,
fez ao presidente da República, Jair Bolsonaro. Limito-me a resumir:
acusou-o de fraudar a assinatura do ex-ministro na exoneração do
diretor-geral da Polícia Federal – em seguida, o governo editou a
publicação no Diário Oficial, procurando se esquivar de acusações de
falsidade ideológica; acusou-o de ter traído o que foi prometido, em
público e para todos verem: que Moro teria total liberdade e não haveria
interferência do mandatário na Polícia Federal. Moro depois revelou
imagens de conversas que indicam que ele não mentiu sobre não ter feito
uma chantagem para obter vaga no STF e que o presidente insinuou que uma
investigação contra aliados deveria ser detida.
O discurso do presidente em sua defesa foi longo, desencontrado e
tragicamente ruim. Bolsonaro chegou a fazer mais confissões
comprometedoras que não pretendo detalhar aqui. Prefiro usar o momento
político, lastimavelmente ocorrido em meio a uma pandemia que afeta o
mundo inteiro, para uma revisão mais ampla do quadro histórico.
Já escrevi algumas vezes
que é possível sim, a despeito das inúmeras diferenças entre eles,
estabelecer comparações entre Jair Bolsonaro e o ex-presidente Jânio
Quadros – especialmente do ponto de vista do contexto de suas eleições,
mais do que em matéria de juízo de valor. Argumentei: “Em 1960, o
Brasil vivia o desgaste de uma oligarquia política, a oligarquia
varguista, que dominava o país havia muito tempo, desde a ditadura de
seu ícone maior. O governo JK findava sob torpedos da oposição udenista,
de viés liberal conservador, por denúncias de corrupção na construção
de Brasília – envolvendo, vejam só, empreiteiras – e por suas medidas
inflacionárias e desenvolvimentistas, que deixaram as contas do país com
sérios problemas. (…) Eis que surge um fenômeno de popularidade. Ao
contrário de Bolsonaro, o paulista Jânio Quadros já tinha experiências
positivas no Executivo para mostrar, mas isso era um ingrediente a mais
no pacote que ofereceu. Ele se apresentou, depois de uma carreira como
uma espécie de demagogo que passou pelo próprio PTB, como a antítese do
sistema, aquele que romperia com a oligarquia, acabaria com os
privilegiados e corruptos, não faria a política de costume e sim uma
nova, diferente. Ele se torna um fenômeno de massa. O que a UDN e os
lacerdistas fazem? Cientes de que não podem vencer o fenômeno de massa e
de que não têm ainda uma candidatura capaz de fazer algo sequer
parecido com o que o janismo já fazia, acoplaram-se a ele. O raciocínio
era simples: todos sabiam que Jânio Quadros não era um liberal, não era
um udenista, não tinha a formação política deles. No entanto, das três
opções, uma: Jânio poderia mudar de posição, apesar de lhe ser mais
confortável combater “tudo que aí estava” – e o que “aí estava” era o
varguismo – e se aliar aos inimigos; poderia vencer sozinho e tentar
instaurar uma ditadura para governar sem os partidos; ou a UDN poderia
se associar a ele, procurando oferecer uma base parlamentar e de
governo, e tentar aproveitar sua popularidade e seu triunfo para
finalmente levar adiante as reformas por que ansiava há décadas, mesmo
sabendo que Jânio não era exatamente o mais perfeito exemplar do
udenismo.”
Nesse aspecto, o triunfo do bolsonarismo guarda muitos paralelos com o
triunfo do janismo. Nas duas situações, a direita liberal conservadora –
na época, representada pela UDN; atualmente, sem um partido ou uma
coesão muito bem definidos, mas representada por ativistas e
intelectuais do que nos acostumamos a chamar de “Nova Direita” – não
dispunha de uma candidatura própria, formada em seu seio, com vigor
eleitoral efetivo para levar adiante a sua agenda, não obstante o
momento político fosse oportuno para que essa agenda fosse alavancada.
Nos dois casos, essa direita percebeu que um líder populista – no
caso de 2018, um líder sindical dos militares, por décadas no
Parlamento, que se catapultou por sua capacidade de dizer o que as
pessoas queriam ouvir, de “viralizar” nas redes sociais, por seu carisma
pessoal, pelo apelo ao combate à criminalidade e ao politicamente
correto, entre outros fatores – estava “na crista da onda” e oferecia
condições políticas de abrigar, em sua plataforma de campanha, a agenda
liberal conservadora. Não dispondo de opção efetiva, tentou aproveitar a
brecha aberta pelas circunstâncias da melhor forma possível. A essa
estratégia, apelido aqui de “estratégia janista”.
Muitos amigos (ou ex-amigos) ditos liberais, de viés nitidamente mais
“progressista” – alguns acabaram declarando, no fim das contas, que até
em Ciro Gomes votariam -, fizeram oposição implacável à escolha por
Bolsonaro, e depois ao seu governo, desde a primeira hora. Acusaram os
liberais que, como Lacerda e a UDN fizeram com Jânio, se conectaram a
Bolsonaro pela porta que o então candidato lhes abriu para tentar
emplacar as reformas liberais, de serem “vendidos ao totalitarismo”. Seu
desejo seria que candidatos como Henrique Meirelles ou Geraldo Alckmin
tivessem recebido esse apoio. São aqueles que o presidente do Conselho
Deliberativo do Instituto Liberal, Rodrigo Constantino, chama de
“radicais do extremo centro”. Não concordei e não concordo com eles.
Provavelmente estão ironizando os “fascistas” Paulo Guedes e Salim
Mattar neste momento, sendo que, paradoxalmente, muitos deles, lá atrás,
pregavam que a direita deveria ser politicamente realista. Como
argumento, alegam que todo mundo já sabia quanto Bolsonaro valia e se
deixou iludir por seu liberalismo fingido.
Ora, em todas as minhas manifestações a respeito, sempre disse que
não alimentava qualquer ilusão. No mesmo texto em que comparei Bolsonaro
a Jânio, concluí: “Nunca acreditamos que Bolsonaro fosse um liberal ou
que fosse o candidato dos nossos sonhos. Quem o proclama está atacando
um espantalho. Ele, porém, foi quem se tornou uma espécie de fenômeno de
massa e permitiu que certa pauta liberal se acoplasse à sua plataforma.
Seu programa de governo, com a chegada de Paulo Guedes, englobava
flexibilização de acesso a armas, privatizações, reforma do pacto
federativo, abertura ao comércio exterior… Do outro lado, estava o PT.
Ao contrário de 1960, havia dois turnos em 2018. No primeiro turno,
havia outras opções, e sequer ressuscitarei a discussão quanto a elas e
suas possibilidades de vitória. No segundo, era Bolsonaro ou Haddad. Que
se deveria fazer? Manter neutralidade, fingir que esses aspectos não
estavam no programa de Bolsonaro e pretender que sua plataforma era a
mesma coisa que o retorno do lulopetismo que desgraçou o Brasil?”.
O liberal que apoiou Bolsonaro optou por uma tentativa realista e um cálculo de risco. Ao recomendar que meus leitores o elegessem em 2018,
deixei claro que o presidente tinha e tem uma leitura histórica
equivocada e antiliberal do período militar, que não tem uma formação
liberal conservadora consistente e que sua trajetória política não era a
de um apoiador do liberalismo. Da mesma forma, não o era Jânio.
Contudo, ele se havia tornado a única alternativa e o PT, com seu
império do crime e do patrocínio internacional ao autoritarismo de
esquerda, precisava, por dever moral, ser derrotado. Não cabia omissão.
Cabia tentar dar uma chance a Paulo Guedes e sua equipe. Cabia tentar
dar uma chance ao ministério bastante técnico que seria formado. Cabia
mudar para a direita.
Em absolutamente nenhum momento, o voto, que é uma aposta política
feita de acordo com o que permitem as circunstâncias em que se verifica,
representa uma carta branca conferida ao seu destinatário. Não é um
compromisso de submissão, não é uma declaração de subserviência. Pontuei
que precisávamos dar apoio às reformas e não encarnar, ao lado das esquerdas, a oposição sistemática ao governo que elegemos – sim, elegemos.
Deveríamos tentar ajudá-lo enquanto se mantivesse minimamente fiel às
agendas que pretendíamos consagrar nas urnas, aceitando certos aspectos
da personalidade limitada do presidente, que poderiam ser
administráveis. Chama-se realpolitik.
Poderiam – mas já não o são. Desde os primeiros meses, o governo, que
entrou com ampla margem da população a favor, com a força inerente a
governos em gestação, não obstante tenha dado início a trabalhos
meritórios de seus quadros técnicos, tenha adotado uma postura mais dura
com a tirania chavista na Venezuela, tenha diminuído os índices de
criminalidade (trabalho, enfatize-se, do ministério de Moro), já se viu,
graças à atuação de um núcleo mais radical – que muito pouco tem de
liberalismo e conservadorismo efetivamente -, envolto em disputas de ego
e espaço e autofagias de toda sorte, acusações de golpismo militar ao
vice-presidente e autossabotagens infindáveis. Era razoável esperar que o
tempo remediasse isso, mas tais disputas inúteis, com direito à
desqualificação dos subordinados nos ministérios que, teoricamente,
teriam autonomia; às constantes e desastrosas campanhas movidas pelo
antiliberal Carlos Bolsonaro, o “vereador federal”; e, principalmente, à
ampla indisposição do presidente de conter essas insanidades, acenderam
um sinal amarelo.
O governo é o principal responsável por fragilizar progressivamente a
si mesmo a ponto de chegar a estes tristes dias instado a ofertar
cargos a parlamentares condenados no mensalão e no petrolão. Movido pelo
velho patrimonialismo que os liberais querem combater há décadas, o
presidente ofereceu uma embaixada a seu filho Eduardo, bem como o então partido do governo ajudou a desidratar a reforma previdenciária.
Depois, Bolsonaro abandonou o PSL e decidiu governar sem que sua base
aliada efetivamente “existisse”, funcionasse no Congresso. O Parlamento,
presidido por figuras que não exatamente morrem de amores pelo
presidente, foi ganhando força e nada disso parecia que terminaria bem.
Até então, tecendo críticas pontuais, mantínhamos esperanças. Então veio o coronavírus. Já deixei clara a minha opinião sobre o tema do isolamento social,
que sei não ter sido majoritária na direita brasileira. Porém,
independentemente disso, a postura do chefe de Estado e de governo do
país, metendo-se a paparicar aglomerações, dizendo que “brasileiro vive
em esgoto e não pega nada”, que é “atleta” e teria apenas um
“resfriadinho” se contraísse o vírus, que não é “coveiro” e por isso não
comentaria as mortes, e sua absoluta incapacidade de alinhar um
discurso com seu próprio Ministério da Saúde, preferindo desafiá-lo a
todo momento a respeito de uma situação séria para ao final exonerar
Mandetta, depois de ameaças patéticas veiculadas através da imprensa,
foi flagrantemente inadequada. Não me é possível, em sã consciência,
apoiar, só porque o elegi, estultices que nenhuma outra liderança global
proferiu. Se os bolsonaristas disserem que “o elegeram foi para isso
mesmo”, podem ficar com essas pérolas insensíveis para eles. O meu voto
não foi para isso.
Bolsonaro, para além de tudo isso, participou e se disse representado
pelos realizadores de uma manifestação flagrantemente golpista – e as
imagens e áudios não permitem estripulias retóricas para negar esse
fato. Desde o começo da pandemia, defendi que o tensionamento político
fosse reduzido para que pudéssemos enfrentar esse problema mundial com
sinergia e alguma dose de paz. Infelizmente, o próprio presidente não
tornou isso possível. Coroando essa sequência de horrores, Bolsonaro
resolveu fazer a mudança na direção da Polícia Federal, implodindo de
imediato a relação com outro ministro central de sua equipe, Moro, que
disparou a bomba desta sexta-feira (24).
Para piorar, não termina por aí. No dia anterior, o Jornal da Record,
emissora alinhada ao governo, veiculou uma matéria muito estranha,
enaltecendo o general Braga Netto, apresentado como grande líder que
ocupou o vácuo político, e relacionando o que seriam erros de Paulo
Guedes, especialmente apostar no “liberalismo extremo”. A reportagem não
ouviu nenhum economista liberal. Ela foi inteiramente desenhada para
tomar um partido e depreciar a agenda liberal do ministro da Economia,
como que a desenhar a atmosfera para a efetivação de um programa
bilionário e desenvolvimentista de obras públicas. Não gostei do cheiro
de fumaça.
A “estratégia janista” original fracassou, diz-nos a História. Jânio
renunciou e nos lançou no inferno de João Goulart. Se as circunstâncias
impunham atitude semelhante, rechaço a ideia de que repeti-la foi um
erro. Não guardo qualquer arrependimento por tê-lo feito, assim como
votaria em Jânio se estivesse vivo em 1960 e votaria em Fernando Collor
em 1989. Nosso erro foi, este sim, ter submergido na
“bolsonarodependência”. Mesmo que o elegêssemos, tínhamos a obrigação de
construir um projeto sério de multiplicação de lideranças consistentes,
não abraçar o culto varguista de uma personalidade. A agenda liberal
conservadora não pode depender de uma única pessoa – muito menos de um
séquito indisposto a ouvir críticas e que, até o dia anterior, insistia
em vociferar que a imprensa é comunista apenas para negar o atrito entre
o presidente e Moro, para, no dia seguinte, constatada a veracidade do
fato, mudarem o discurso para atacar a reputação do ex-juiz.
Não é possível mais enxergar este governo com os mesmos olhos.
Continuo apoiando a equipe de Paulo Guedes e o trabalho de Tarcísio
Gomes na Infraestrutura, entre outros esforços positivos feitos por
ministros nomeados por escolha e mérito político de Bolsonaro.
Infelizmente, não há qualquer garantia de que sua autonomia para dar
continuidade e cumprimento a esses esforços será mantida. Estamos
presenciando uma implosão a respeito da qual não podemos fazer
absolutamente nada. O único chamamento à ação que faço aqui é este:
fechemos para balanço e trabalhemos para construir nossas possibilidades
de futuro. A “estratégia janista” não pode mais ser o nosso único
recurso.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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