O mundo mudou; as doenças e o modo de encará-las também. Texto de Murilo Cleto para o Estado da Arte:
Marselha, 1720: carros funerários circulam pelas ruas e as pessoas,
curiosamente, se põem a celebrar. Em alguns meses, a peste deve ter
dizimado metade dos 100 mil habitantes da cidade portuária no sul da
França, num dos últimos grandes surtos pestilentos anteriores à
Modernidade.
A
peste bubônica, como se sabe, varreu o continente europeu especialmente
entre 1348 e 1351. De Lisboa a Moscou, de Dublin a Constantinopla,
cerca de um terço da população do velho mundo simplesmente desapareceu. E
é um grande equívoco restringir a epidemia, como mostra o caso
marselhês, ao século 14. Antes disso, entre os séculos 6 e 8, havia uma
explosão de casos a cada 9 ou 12 anos.Ilustração de médicos em suas
vestes durante a peste
Médicos durante a peste. |
Depois de dar sinais de que desapareceria, o flagelo ressurgiu com
força às margens do mar de Azov em 1346 para seguir, depois, em direção
ao Império Bizantino, à Gênova e, logo, à Europa inteira. Pelo menos um
surto por ano, dali em diante, acometeu um lugar ou outro do continente
até o século 16. Em alguns lugares, como na França, a tragédia
prosseguiu: foram 36 até 1670.
Os números são aterrorizantes. Em alguns lugares, a taxa de mortos
ultrapassou com folga os 50%. É o caso da comuna lombarda de Mântua, em
1630: 77%. Coincidentemente, essa é uma das regiões mais afetadas do
mundo pelo novo coronavírus 4 séculos depois. A Itália perdeu 1,7 milhão
dos seus na primeira metade do século 17. A Espanha, que também assiste
a uma escalada vertiginosa da covid-19 em 2020, sofreu um abalo
demográfico de ordem similar no mesmo período.
Seja como for, as estatísticas contam apenas um fragmento dessas
histórias. Um fragmento importante, mas ainda assim um fragmento. Com
isso, quero dizer que tragédias dessa magnitude produzem, por sua vez,
muitas outras no seu interior. Tragédias que o olhar panorâmico não
capta, mas que vão aos poucos matando a humanidade junto à epidemia que
as consome. Pode soar etéreo demais, mas a realidade explica.
Ellis Marsalis Jr., pianista patriarca da capital mundial do jazz,
foi uma das vítimas fatais do coronavírus em 2020. Aos 85 anos, morreu
deixando um legado imensurável na música – e os filhos estão aí para que
ninguém duvide. Seu enterro será como o de tantos outros no meio da
pandemia: frio, restrito, sem abraços ou distintas homenagens nas ruas
de Nova Orleans. A cidade da Louisiana, famosa por transformar cortejos
fúnebres em contagiantes declarações de amor à vida, precisou engolir o
luto a seco.
Junto a Marsalis, estão também milhares de anônimos que padecem em
meio à maior crise global do século. Gente que morre pela covid-19 ou
por qualquer outra coisa. A essa altura, todo mundo já passou ou conhece
alguém que passou pela experiência de não poder se despedir como
deveria de um ente querido. Comoveu o mundo a campanha que arrecadou
tablets na Itália para que familiares pudessem dar adeus aos seus à
beira da morte diante da superlotação dos hospitais e o alto poder de
contágio do vírus.
A solidão tornou-se um imperativo de sobrevivência – não só
individual, porque para muitos essa já nem importa mais, mas coletiva.
Na mesma Marselha de 1720, um relato contemporâneo da peste conta: “[o
doente] é fechado em um sótão ou no aposento mais recuado da casa, sem
móveis, sem comodidades, coberto de velhos trapos e daquilo que se tem
de mais gasto, sem outro alívio para seus males que não uma bilha de
água que se colocou, ao fugir, de seu leito e da qual é preciso que ele
beba sozinho apesar de seu langor e de sua fraqueza, muitas vezes
obrigado a ir buscar seu mingar a porta do quarto e arrastar-se depois
para voltar à cama. Por mais que se queixe e gema, não há ninguém que o
escute”.
Nas ruas do Equador, em 2020, cadáveres se amontoam nas casas e nas
ruas diante do caos funerário. Caminhões do exército na Itália
transportam os corpos, que fazem fila nos cemitérios e crematórios. Na
Espanha, pistas de gelo são improvisadas para retardar o processo
irreversível de putrefação porque não há necrotérios o suficiente.
Uma testemunha ocular da gripe espanhola – que matou algo como 50
milhões de pessoas num mundo bem mais conectado do que o medieval e
moderno – no Rio de Janeiro, em 1918, conta que “as mortes eram tantas
que não se dava conta do sepultamento dos corpos”. Os cadáveres então
inchavam e apodreciam nas ruas mesmo; e, quando a assistência pública
vinha recolhê-los, diante do grande volume, apenas trocava os que mais
fediam pelos mais frescos.
Na Londres do século 17, Daniel Defoe descreve um cenário parecido:
“Todo espetáculo estava repleto de terror: a carreta levava 16 ou 17
cadáveres envoltos em panos ou cobertas, alguns tão mal recobertos que
caíam nus entre os outros. A eles, pouco lhes importava, e a
independência não importava a ninguém, estavam todos mortos e iam ser
confundidos juntos na forma comum da humanidade. Bem se podia chamá-la
assim, pois ali não se fazia diferença entre ricos e pobres. Não havia
outra maneira de enterrar e não se teriam encontrado caixões em razão do
número prodigioso dos que pareciam em uma calamidade como aquela”.
Ninguém sai ileso de uma experiência dessas. No texto que dedica a
uma tipologia do comportamento humano em tempos de epidemia, Jean
Delumeau diz que “quando a morte é assim desmascarada, ‘indecente’,
dessacralizada, a esse ponto coletiva, anônima e repulsiva, toda a
população corre o risco do desespero ou da loucura, sendo subitamente
privada das liturgias seculares que até ali lhe conferiam nas provações
de dignidade, segurança e identidade”.
Também da Itália, chegam notícias de que enfermos não podem ter
acesso ao rito católico da extrema-unção. Pode parecer trivial para os
céticos, mas faz toda diferença para quem comunga da fé e está no leito
esperando por um milagre. Afinal, são coisas como essas que nos
distinguem dos demais animais na natureza.
Essa implosão abrupta da fronteira que aparta mais explicitamente
homens e selvagens produz cenas de horror, como a esbórnia dos que, como
alertam Tucídides e Boccaccio – separados por quase 2 mil anos –,
esperam não viver o bastante para ter de prestar contas de seus atos; ou
o desalento dos que se simplesmente se entregam diante da iminência da
morte.
O monsenhor de Belsunce, na Marselha de 1720, decidiu que não
arredaria pé de casa nem depois de despejar 11 cadáveres lá de dentro –
eram 150 nos arredores. Em vez disso, ele escreveu à polícia pedindo
ajuda para limpar a área e impedir que o local continuasse funcionando
como depositário. Mas tinha quem fosse além. Diversos cronistas desses
passados relatam casos de suicídios, como os que lamentavelmente vêm
ocorrendo agora com o avanço do coronavírus e as perspectivas de uma
tragédia sanitária e social.
Sobre a Londres de 1665, onde “mal se podia passar por uma rua sem
ali ver alguns cadáveres no chão”, Daniel Defoe diz que as pessoas “sob o
furor do mal, na tortura causada pelos tumores, em delírio, presas da
loucura, agrediam a si mesmas e punham fim à vida”. Um médico de Málaga,
mais ou menos no mesmo período, conta as histórias de uma mulher que
resolveu se enterrar para não servir de alimento aos animais e de um
homem que, logo após o sepultamento da filha, “construiu seu próprio
caixão e ali morreu junto dela”. Já no século 19, o poeta italiano
Alessandro Manzoni cravou que, junto à perversidade, também escalou com a
peste a demência.
E é por isso que os marselheses do século 18 foram instigados a
sorrir quando, em meio ao caos que já não permitia mais distinguir as
mortes que, física ou simbolicamente, se amontoavam na cidade, viram o
serviço funerário funcionando mais uma vez. Não era a morte que estavam a
comemorar, mas o primeiro sinal de ressurreição do que na verdade a
morte numa escala sem precedentes havia matado.
Ao que tudo indica, estamos, por uma série de razões, distantes de um
desfecho otimista como esse. O mundo mudou; as doenças e o modo de
encará-las também. E, embora o passado não sirva exatamente como um
espelho para o presente, ainda dá tempo de usá-lo para que não se
subestime as dimensões da letalidade que uma experiência dessas pode
representar.
Uma explosão de casamentos também se seguiu à peste em Marselha. De
acordo com cronistas da época, “o furor de casar-se era tão grande que
um dos casados que não tivera a doença do tempo desposava muito bem sem
dificuldade o outro cujo bubão mal se fechara”. Não era só atrás do amor
que estavam os franceses, mas daquilo que nos é distintivo. Era do
rito. Do que carece de uma finalidade prática objetiva e instintiva, mas
que transborda significado. De ser gente, afinal.
Murilo Cleto é historiador,
especialista em História Cultural, mestre em Ciências Humanas e
pesquisador das novas direitas no Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal do Paraná.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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