O mundo político não está acostumado a lidar com situações-limite como
as atuais, que fogem à normalidade das negociações típicas dos ambientes
palacianos. Artigo de Gabriel Heller, Guilherme Carvalho e Rafael
Maffini, publicado pelo Estado da Arte:
Em A política da fé e a política do ceticismo,
o filósofo inglês Michael Oakeshott discorre sobre o que entende serem
os dois estilos teóricos e históricos de política entre os quais o mundo
ocidental teorizou e viveu nos últimos 500 anos: a política da fé e a
política do ceticismo. Trata-se das duas formas de pensar e realizar a
atividade governamental.
A política da fé – que não deve ser confundida com qualquer doutrina
religiosa ou simbiose entre religião e Estado – seria aquela em que o
governo figura como agente de um ilimitado aprimoramento humano, seja em
sua condição moral, seja em sua condição de prosperidade e bem-estar.
As instituições estatais funcionariam, assim, como meio, veículo para
excluir o erro e fazer a “verdade” prevalecer. De modo a alcançar esse
propósito nada modesto, o Estado não teria alternativa que não se
converter em um ente “onicompetente”.[1]
De seu turno, a política do ceticismo representaria o modo de pensar e
administrar segundo o qual a atividade governamental subsiste não por
ser boa, mas por ser necessária, especialmente para reduzir as ocasiões e
a gravidade dos conflitos humanos. Não se trata de defesa de um governo
fraco, que seria inútil, mas de rejeição de um governo “minucioso”; o
cético advogaria a limitação dessa atividade a um campo estreito, mais
preocupado em garantir o formalmente estabelecido por meio de controle e
reparação do que em promover inovações e elevar indivíduos.[2]
Nas fundações da complexa interação entre essas formas de pensar e
governar, que marcam a ambivalência de nossa vivência estatal, Oakeshott
põe a ambiguidade de nosso vocabulário político, a qual teria como
“emblema” o brocardo romano salus populi suprema lex esto, expressão
“citada, mal interpretada, adaptada, resumida e parodiada”, utilizada
por defensores tanto da política da fé quanto da política do ceticismo.
Embora a palavra salus remetesse a uma deusa que personificava saúde,
prosperidade e bem-estar público, Cícero, o primeiro a referi-la, teria
restringido o significado de salus populi para designar a segurança da
República. Nos séculos que se seguiram, o alcance de salus foi
consideravelmente ampliado, passando a denotar “prosperidade da nação” e
“salvação”, de forma que o foco de seu emprego deixou de ser o Estado
para se tornar o povo. No caminho não linear das transformações e
distorções de significados, marcadamente no exercício da política da fé,
o conceito mínimo de “segurança” (proteção física) é alçado a um meio
termo (garantia contra a miséria) e se converte em máximo (promoção de
bem-estar – o que quer que se entenda pelo termo – ou “direito” à
felicidade).
Nos dias em que vivemos a pandemia do Covid-19 (Coronavírus), não há
uma resposta simples às dúvidas acerca do conceito de segurança para o
qual devemos nos voltar e do que ora se demanda dos governos. Parece
haver um mínimo denominador comum: a imperatividade da adoção de medidas
extraordinárias pelo Estado – e apenas uma tacanha “luta política”
aceita trazer ao tabuleiro falsas contradições de políticos e pensadores
liberais. A imprecisão desse mínimo denominador, contudo, é notória,
mormente quando os diversos entes federativos caminham descompassados,
descoordenados, desarticulados, reclamando, de imediato, um freio de
arrumação.
O mundo político não está acostumado a lidar com situações-limite
como as atuais, que fogem à normalidade das negociações típicas dos
ambientes palacianos. A parcial dicotomia posta entre as exigências da
saúde das pessoas e da economia nacional, da qual essas mesmas pessoas
dependem para angariar seu ganha-pão, requer um ajuste fino cujo alcance
não se coaduna com a rapidez requerida do processo político-decisório.
Em consequência, todos ficamos sujeitos aos erros e acertos de
prognósticos altamente imperfeitos, estabelecidos, assim na seara
sanitária como na econômica, por representantes eleitos e seus
assessores, a partir dos conhecimentos técnicos disponíveis,
frequentemente insuficientes. Essa situação revela a natureza
preponderantemente política da realidade posta, o que impõe o
reconhecimento de que o controle a ser exercido, neste momento, também é
preponderantemente, embora não exclusivamente, político.
Como lembrou Dominique Rousseau, em artigo
publicado neste Estado da Arte, o especial cuidado com a salvaguarda
dos direitos fundamentais em estados de emergência ou de calamidade deve
se concretizar por meio dos Parlamentos, dos Tribunais e da imprensa.
Todavia, todos esses atores hão de ter em conta suas limitações
institucionais e seus próprios compromissos para com a Constituição e as
pessoas. A modéstia e a autocontenção apresentam-se excepcionalmente
recomendáveis.
Em meio a tantas incertezas, compõe o mínimo denominador comum a
terrível assunção – que ninguém pode subestimar e minimizar – de que as
concessões que se fizerem na saúde, na economia e na liberdade carregam
consigo riscos incomensuráveis. Aqui, outra lição de Oakeshott merece
ser retomada: a importância do “estivador”, “aquele que aproveita seu
peso para manter o barco em equilíbrio”, o que, em termos
governamentais, significa ser temeroso de que a política caminhe em
direção aos extremos e acreditar que há um tempo para tudo e que tudo
tem seu tempo.
Mesmo os defensores da política do ceticismo reconhecem que o governo
deve ser forte, com vista a agir no tempo certo e com a intensidade
necessária para lidar com as circunstâncias e os obstáculos que se
apresentem em seu caminho. Em uma Federação de dimensões continentais,
com técnicos da Economia e da Saúde expondo as consequências nefastas
dos mais diversos cursos de ação, cabe esperar que a coordenação dos
entes se imponha e que, sob o vigilante olhar do povo e das
instituições, os mandatários das três esferas ajam como estivadores, a
equilibrar o barco em mares tão turbulentos e garantir segurança ao povo
– qualquer que seja o conceito de segurança que hoje se possa
concretizar.
Notas:
[1] OAKESHOTT, Michael. A política
da fé e a política do ceticismo. 1. ed. São Paulo: É Realizações, 2018,
p. 59-64. Oakeshott deixa claro que “onicompetente” não significa
“absoluto”, pois não diz respeito à autoridade do governo, mas sim à
atividade e aos objetivos de governar.
[2] Ibidem, p. 70-74.
[3] Michael Oakeshott, op. cit., p. 186-188.
Gabriel Heller é mestre em Direito e auditor de controle externo.
Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas e advogado.
Rafael Maffini é mestre e doutor em Direito, professor adjunto de Direito Administrativo na UFRGS e advogado.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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