Entrevista do filósofo italiano Massimo Borghesi ao Estado da Arte:
Autor de inúmeros livros e artigos, o filósofo italiano Massimo
Borghesi, 69 anos, professor titular de Filosofia Moral no Departamento
de Filosofia, Ciências Sociais, Humanidades e Educação da Universidade
de Perugia, caminha entre a filosofia e a teologia para pensar a
contemporaneidade. Ensinou também na Faculdade de Educação da
Universidade de Lecce, na Pontifícia Universidade Urbaniana e na
Pontifícia Universidade S. Bonaventura, em Roma, onde foi diretor da
“Cátedra Bonaventuriana”.
Em entrevista exclusiva para o Estado da Arte, realizada por Rodrigo Coppe,
o autor de Secolarizzazione e nichilismo. Cristianesimo e cultura
contemporanea e Critica della teologia politica nos ajuda a compreender
alguns enlaces do debate em torno da secularização, conceito e realidade
que nos toca contemporaneamente e nos exige um olhar mais acurado.
Sabemos que o conceito de secularização é objeto de inúmeras
controvérsias sociológicas e filosóficas. Certos teóricos, como Peter
Berger, falam hoje em dessecularização. Hans Blumemberg o critica em seu
The Legitimacy of the Modern Age e Charles Taylor o utiliza em sua
reflexão. Como o senhor o compreende?
A obra de Blumenberg, Die Legitimität der Neuzeit, é de 1966. Foi
escrita no contexto moderno e neoiluminista da Europa da década de 1960.
O autor rejeita a categoria de secularização porque ela pressupõe a
herança cristã ainda presente na cultura do Velho Continente.
Nos anos 1970 e 1990, o consenso cultural era de que a religião
constituía uma espécie de passado remoto e que a emancipação moderna se
voltava para um terreno antropológico totalmente autônomo. Então, após o
11 de setembro e a disseminação do islamismo radical, a sociologia da
modernização teve que mudar radicalmente seus parâmetros: a religião
novamente se torna um fator do presente, ativo e dinâmico, ainda que
seja a fonte, em alguns casos, de desvios patológicos. Há, portanto, uma
crise do modelo de secularização, substituído, como se vê em Peter
Berger, por um de uma sociedade “pós-secular”. Na realidade, é mais
correto dizer que, após 1989 e a queda do comunismo, o preconceito
racionalista contra a religião decai, mas isso não significa o retorno
automático à dimensão religiosa. Hoje estamos diante de um cenário
particular. Não se trata do ateísmo, como poderia ter sido nos anos 1970
que eram dominados pelo marxismo. Estamos diante de um agnosticismo
vivido, inconsciente, que não coloca a questão o problema religioso pela
simples razão de que não tem mais notícias ou testemunhos diretos dele.
O novo agnosticismo é diferente do agnosticismo kantiano do século
XIX, que não sabia se Deus existia, embora fosse preferível que
existisse. Assim como é diferente do agnosticismo positivista, que tende
a superar o mesmo ateísmo, dissolvendo, na raiz, as questões
metafísicas e a necessidade do divino. Nada se sabe sobre Deus porque
não há nada para saber. O agnosticismo dos jovens hoje é diferente. É
diferente, inclusive, de seus pais que, decepcionados com a estação e as
utopias de 1968, estão imbuídos de um profundo ceticismo. Para os
jovens, pelo contrário, ser agnóstico significa não saber nada sobre
Deus, ou, na Europa, sobre a vida cristã. Eles não são avessos à fé,
mesmo que não escapem dos preconceitos da tradição iluminista, e são
bastante estranhos, distantes, alheios. Eles pertencem ao reino dos sem
religião, os nones,* de acordo com a designação americana estudada por
Guillaume Cuchet em seu artigo La montée des sans-religion in Occident.
Os nones, que são a maioria e estão aumentando progressivamente, esboçam
uma nova espiritualidade. A secularização não produz mais ateísmo, como
no século XIX, mas indiferença, distanciamento antropológico,
sensibilidades diferentes.
[* Nota dos tradutores: None é a designação para pessoas sem
afiliação religiosa (a categoria inclui aqueles que dizem não acreditar
em “nada em particular”, agnósticos e ateus).]
Seu livro publicado em 2005 traz como título “Secularização e niilismo”. Como essas grandezas conceituais se relacionam?
A relação é dada pelo fato de que os anos 1980 e 1990 viram a usura, a
saturação-dissolução dos processos de secularização no Ocidente. A
Europa do pós-guerra reconstruiu uma tradição humanística, que havia
sido quebrada pelo totalitarismo e pela barbárie, por meio de uma
síntese cristã-iluminista-liberal. Essa síntese se decompôs nos anos
1960 e 1970. A era da globalização coincide com a dissolução do modelo
de secularização: o humanismo cristão-iluminista dá lugar a um
relativismo ético cujo resultado final é o niilismo radical. É esse
resultado que explica a reação crítica de Habermas à categoria de
“pós-moderno”. Para Habermas, o Iluminismo, a ideia de uma razão
universal, pode encontrar a vida hoje apenas se dialogar com a reserva
de significado que surge da posição religiosa. Daí sua comparação com o
cardeal Joseph Ratzinger e com a tese de Ernst-Wolfang Böckenförde,
segundo a qual “o Estado liberal secularizado se alimenta de
pressupostos normativos que ele próprio não é capaz de garantir”. A
democracia liberal opera com premissas religiosas, pré-políticas, que o
niilismo coloca em xeque. Um sistema democrático não é apenas uma ordem
político-legal neutra. Pressupõe um senso de solidariedade entre os
cidadãos, um senso de gratuidade que só pode encontrar alimento em uma
dimensão religiosa. Se a democracia não quer morrer hoje, deve se abrir
para a dimensão religiosa. O Iluminismo clássico, que surgiu contra a
religião, deve se repensar, abrir-se à forma de um novo Iluminismo cujo
oponente não é mais fé, mas o niilismo que mata todo ideal e se abre
para a tirania.
Habermas |
Os séculos XIX e XX foram marcados pela emergência de ideologias
que impulsionaram os intelectuais e as massas em vista de seus projetos
políticos. A partir da década de 1930 desenvolveu-se o conceito de
“religiões políticas” (Eric Voegelin) e/ou “religiões seculares”
(Raymond Aron) para tratar desse fenômeno. O senhor acredita que é uma
categoria que colabora com compreensão das ideologias políticas? Ele é
válido ainda hoje?Respondo com uma distinção formulada por
Augusto Del Noce em seu livro L’era della secolarizzazione de 1970. Diz o
autor: “Na era da secularização, podemos distinguir um período que se
pode dizer sagrado (em relação ao fenômeno das religiões seculares, que
unem o comunismo, o nazismo e o fascismo) e um período profano;
subitamente, e com a necessária aproximação das datas, podemos dizer que
o primeiro se encerra com a morte de Stalin. O fascismo e o nazismo
pertencem inteiramente ao período ‘sagrado’: o fenômeno que caracteriza o
período ‘profano’ é a sociedade abastada”. A análise do segundo momento
da secularização, o “profano”, que caracteriza a era da globalização
com suas combinações de techne e eros, positivismo e libertinismo, está
visível para todos. Persegue o esquecimento da morte e dos limites
humanos por meio de um agnosticismo mais profundo do que o ateísmo. Um
agnosticismo que hoje revela rachaduras, fraturas por todos os lados.
Devemos nos perguntar: a fase “sagrada” da secularização terminou? Em
certo sentido, sim, e não se pode pensar, como sempre na história, na
sua repetição. A herança cristã foi consumida em grande parte do velho
continente. Pensar em uma tradição secularizante, à maneira de Hegel,
soaria anacrônico. Hoje, a fé certamente não requer secularização, mas
um renascimento. Até Habermas, como já foi dito, está perfeitamente
ciente disso em seu Iluminismo pós-secular. No entanto, formas de
ressacralização de um religioso secularizado estão surgindo no horizonte
devido à crise da secularização “profana”. O islamismo radical, por um
lado, e os soberanismos, por outro, expressam de maneira diferente uma
dialética antitética e especular. Eles reagem ao universalismo abstrato
do modelo tecnocrático e necessitam de “raízes”, solo, sangue, a fé de
seus pais. Eles expressam teologias políticas e, portanto, um modelo
secular, que precisa de legitimação religiosa. O fato de isso não ser
concedido pelos líderes da Igreja no Ocidente explica a reação dura e
severa em relação ao atual pontificado por grandes setores da direita
mundial. A secularização tem muitas almas: esquerda, direita,
progressiva, reacionária, laica ou religiosa. O que a define é a ideia
de substituição, de ocupar espaços vazios (pela fé), de traduzir uma
mensagem teológica de salvação em uma mensagem política e filosófica.
Deus se torna o Deus dos exércitos, Got mit uns, fé em uma religião
civil, um grito de guerra. As mitologias seculares continuam a agitar o
cenário mundial.
Raymond Aron |
Em 2015, Julia Kristeva deu uma entrevista em que afirmava que
“per sottrarre l’Islam alla strumentalizzazione del terrorismo anche noi
occidentali possiamo far qualcosa, per esempio cambiare l’atteggiamento
dell’illuminismo che si è costruito in contrapposizione alla religione e
rivalutare il patrimonio spirituale del cristianesimo, dell’ebraismo e
dell’islam”. Como a questão do islã e a forma que os europeus
continentais lidam com o tema religioso se relaciona com a herança
cristã na Europa?
Estou bastante de acordo com os comentários de Kristeva que se
alinham aos de Habermas. Como as teologias políticas do século XVII,
responsáveis pelas guerras religiosas, as de hoje também provocam uma
globalização da fé, um uso ideológico do “Deus dos exércitos”.
Além da teologia política, o autêntico renascimento da fé, hoje como
no passado, não ocorre por contraste, ao longo da dialética
amigo-inimigo, mas por “eventos inesperados”, por meio de encontros que
tornam a vida mais humana. As brechas na sociedade abastada podem nos
conscientizar desses eventos “inesperados” ou, pelo contrário, alimentar
movimentos de violência. Isso significa que a trajetória do mundo
contemporâneo não é unidirecional e nenhum agnosticismo, por mais
radical que seja, pode extinguir a questão do significado que surge
diante da dor e da morte, o espanto diante do milagre do nascimento. A
eutanásia de Deus, como contrapartida ao Éden prometido, flexiona-se em
uma patologia do mundo secularizado ao qual, em reação, a resposta
político-religiosa corresponde. Estamos, portanto, diante de uma espiral
que inverte a dupla modernidade. Nos tempos modernos, o Iluminismo
secular reagiu ao fundamentalismo religioso; hoje, no contexto
pós-moderno, o fundamentalismo religioso reage ao secularismo
positivista. Só é possível sair da espiral se a religião e a razão se
repensarem a partir de uma confrontação ideal feita de unidade e
distinção. Precisamos de um novo Iluminismo que saiba levar a sério o
pedido de significado expresso na dimensão religiosa e, ao mesmo tempo,
uma fé que aceite o pedido de liberdade que vem de suas origens e que
esteja documentado, criticamente, no ideal da modernidade. Estar além do
conflito implica, do ponto de vista religioso, a superação da dialética
entre fundamentalismo e secularização e a busca de uma relação correta
entre tradição e modernidade.
Essa é uma tarefa cultural essencial, fora da qual permanece apenas o
“choque de civilizações” teorizado por Huntington e praticado por Osama
Bin Laden. A modernidade ocidental tem pontos positivos e negativos.
Sua realidade atual é em parte o resultado da herança cristã, em parte o
resultado da emancipação e oposição a essa herança. Essa oposição
assumiu formas radicais – como no modelo secular francês ou no
totalitarismo político dos anos 1900 – e formas mais moderadas. Neste
segundo caso, o modelo secular não vai além do horizonte religioso,
especialmente cristão, que é uma condição de possibilidade. O espaço
público moderno é o lugar de uma desclericalização que surgiu não apenas
contra a Igreja, mas também graças ao duplo registro dos reinos
terrestres e celestes afirmados pela fé. Como escreveu Marcel Gauchet, o
cristianismo é “a religião de saída da religião”. Essa relação entre
uma fé não fundamentalista e um secularismo “aberto” é, como mostra a
recente reflexão de Jürgen Habermas, a questão de hoje.
Julia Kresteva |
Como o senhor compreende a chegada de Jorge Mario Bergoglio e o papel da Igreja católica romana nesse contexto?
Creio que tem um significado muito grande. O Papa Francisco é uma das
poucas figuras, no nível das lideranças mundiais, de testemunho do
nosso tempo. De acordo com sua ideia do catolicismo como coincidentia
oppositorum, sua missão é ser portador da paz em um mundo cada vez mais
violento e devastado por conflitos. Bergoglio não é dominado pelo
problema da secularização e da luta contra a secularização. Ele não quer
que a Igreja seja determinada, por ela estar no mundo, desde uma
posição “antitética” e reativa. Se isso acontecer, a Igreja é
politicamente explorada. Ele certamente vê as consequências do niilismo
que se expressa na visão tecnocrática da vida e no uso instrumental,
apenas econômico, das pessoas. O niilismo se junta ao utilitarismo e à
tecnocracia, com uma perspectiva que elimina o “desperdício”:
deficientes, doentes graves, idosos, desempregados e pobres. Contra esse
niilismo tecnocrático, os cristãos devem se comprometer, lutar e
compartilhar com os outros o compromisso com a justiça e a
solidariedade. No entanto, a Igreja não é um partido. No entanto, a
Igreja não é uma festa. Não é dominada, assim, pela figura do oponente
como na dialética amigo-inimigo de Carl Schmitt. Sua tarefa é anunciar a
doçura e a humanidade de Cristo ao homem de hoje. Um Cristo não
violento, porque a associação entre religião e violência é uma doença
espiritual contra a qual o Papa, em diálogo com as religiões do mundo,
luta persistentemente. Seu ideal é emprestado de Paulo VI: evangelização
e promoção humana; essa é a polaridade que o cristão sempre deve ter em
mente. É sua contribuição para a paz e o bem da história.
(Tradução: Rodrigo Coppe e Alex Sugamosto, professor de Filosofia, escritor e Mestre em Ciências da Religião pela PUC-Minas.)
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário