A ausência de planos para o rescaldo do vírus comprime o tempo político.
Deixa de haver futuro, o tempo mais não é do que um presente repetido.
Vivemos um “estado permanente de emergência”. Artigo de André Santos
Campos, publicado pelo Observador:
Se há algo que a filosofia faz mal, é reflectir a quente. Do alto das
suas torres de marfim, os filósofos enxergam melhor quanto mais ao
horizonte se estende o olhar e quão mais estática for a paisagem. Em
piso térreo, e com o mundo adiante em convulsões, o primeiro instinto
que lhes nasce é o de prescrever, não o de analisar. Porém, há algo de
inerentemente desafiante na actual expressão do coronavírus SARS- CoV-2,
tão facilitadora de juízos drásticos como “esta é a crise mais grave
por que passou o mundo”, “agora sim, aprenderemos a responder às
alterações climáticas”, “doravante, seremos a geração-coronavírus”, ou
“depois disto, nada será igual”. É que o sucedâneo das respostas
públicas à propagação da pandemia tem dito muito da maneira como as
democracias liberais se veem nestes tempos. Apertadas por um desafio de
vida ou de morte, entendem como natural e única via possível de
resistência uma política do encolhimento.
Condicionados pelo provisório, apenas um punhado de notas estão por agora disponíveis aos filósofos políticos.
O regresso do Estado-nação
Suspeita de haver infectado ratos e felinos, a Covid-19 não é
necessariamente humanista, mas é decerto cosmopolita. Nascida na China,
cedo aproveitou a globalização e, ao contrário dos seus ascendentes
SARS, invadiu as sociedades ocidentais. Desprezando a nacionalidade do
hospedeiro e tratando todos os humanos como iguais, aspirou à
universalização. O Estado, enquanto entidade paroquial e particular,
seria então irrelevante.
Da perspectiva das teorias cosmopolitas, esta tensão entre
universalismo (moral) e particularismo (estadual) não é necessariamente
irresolúvel. Partindo da distinção de Kant, na sua obra A Paz Perpétua
(1795), entre os níveis estadual, internacional (da relação entre
Estados) e cosmopolita (da relação entre Estados e estrangeiros), o
Estado poderia ser não tanto um empecilho, mas uma necessidade do
direito de autodeterminação dos povos, conquanto estivesse ao serviço
dos princípios cosmopolitas. O cosmopolitismo seria o resultado de um
processo contínuo pelo qual instrumentos morais universais seriam
progressivamente absorvidos pela lei positiva dos Estados, naquilo a que
a filósofa Seyla Benhabib chamou de “política jurisgenerativa”. A
tensão entre universalismo e paroquialismo nunca seria superada, mas
poderia ser progressivamente amenizada.
O que se tem visto, porém, na resposta à disseminação do vírus, é um
esvaziamento dos âmbitos cosmopolita e internacional. Os Estados
assumiram o monopólio do controlo da resposta ao vírus dentro dos seus
domínios territoriais; a contagem de infectados e mortos recorreu à
linguagem dos nacionalismos e dos domínios territoriais (x aqui, y ali);
a cooperação internacional foi deixada tão em suspenso quanto os
direitos de circulação dos cidadãos; as tentativas de planos de
recuperação para o futuro breve demonstraram fraca solidariedade entre
governos, incluindo uma amostra adicional da impotência do projecto
europeu perante crises comuns; organizações internacionais como a ONU e o
G20 voltaram a mirrar; e os níveis de obediência à imposição estadual
generalizaram-se, como que reforçando a legitimidade única das entidades
estaduais em lidar com uma crise global. Em situações de aperto, a
política parece retornar às suas fundações modernas e agarra-se ao bote
salva-vidas do tradicional Estado-nação.
O encolhimento espacial
Como que imitando seres vivos sob ameaça iminente, na impossibilidade
de fugir, as democracias liberais ensimesmaram-se. Esse gesto de se
encolherem sobre si próprias expressou-se por três vias. Desde logo, a
retoma dos controlos fronteiriços. Negligenciando o princípio exposto
por Spinoza na sua Ética (1677) de que o corpo mais potente é o mais
capaz de afectar e de ser afectado, as instâncias públicas acreditaram
que a maneira mais eficaz de afectarem seria deixando de serem
afectadas. Concentraram o alcance do seu poder normativo, mesmo que
sacrificando o total de poder que tinham disponíveis antes. Logo aí, o
mundo ficou mais pequeno.
De seguida, a quarentena e o confinamento. Notando que a ameaça é
aniquilável apenas pelos próprios hospedeiros (ou seja, de dentro, no
corpo e pelo corpo, sem a intervenção externa de vacinas ou medicamentos
milagrosos), mas que muitos deles morrem porque hospedeiros, a maior
parte dos Estados, com a excepção inicial do Reino Unido e da Suécia,
optou pela estratégia de impedir a Covid-19 de encontrar hospedeiros.
Para tanto, voltaram a considerar a clássica relação entre liberdade e
segurança como dicotómica, sacrificando a primeira em prol da segunda.
As restrições aos direitos individuais de circulação generalizaram-se
devido ao desconhecimento de quem fosse portador do vírus – o
confinamento passou a ser tão exigível quanto a quarentena. Num ápice,
os membros das diferentes democracias perderam o contacto directo com o
que os faz sentirem-se cidadãos: o espaço público, a rua. A sua esfera
de liberdade diminuiu, o mundo voltou a encolher-se. Mas mesmo então,
sentindo na pele o desequilíbrio das diferentes liberdades no ponto de
partida – estar confinado no centro não é o mesmo que estar confinado na
periferia, estar confinado numa moradia com o cônjuge não é o mesmo que
estar confinado num apartamento T2 de 100m2 com os filhos.
Por fim, os recursos ao biocontrolo. Pretendendo impedir os serviços
públicos de saúde de enfrentarem um vírus do século XXI com medidas
próprias do século XX, começaram a proliferar instrumentos de
monitorização e controlo do corpo dos próprios indivíduos. Surgiram
então aplicações informáticas contendo algoritmos que lidavam com
informações relativas ao mais íntimo de cada indivíduo, tais como se
haviam sido já portadores do vírus, com quem haviam mantido contacto,
por onde haviam andado, que temperatura tinham. No Reino Unido,
tornou-se popular uma aplicação que monitorizava a generalização dos
sintomas; nos EUA, milhões de termómetros digitais permitiam a uma
aplicação gerar um mapa, não da terra, mas da temperatura dos corpos. Em
países pouco confortáveis com a liberdade individual, como a China,
esses dados tornaram-se do domínio público e eram exigíveis pelas
autoridades na gestão dos estados de emergência. Em países democráticos,
o consentimento e a anonimidade continuavam a ser requeridos, mas com o
peso do definitivo. Paulatinamente, e apesar do alerta de mentes
lúcidas como as de Yoval Noah Harari, o âmbito das entidades públicas
penetrava dentro de cada um de nós. O mundo voltava a encolher-se e o
poder político focava-se tanto que incidia até sobre cada uma das nossas
células.
O encolhimento temporal
As democracias têm má fama no que respeita às suas capacidades de
lidarem com o futuro. Há razões culturais para isso. A ênfase liberal no
individualismo promove um ethos de auto-satisfação que pode ser
facilmente confundido com uma busca hedonista do prazer, muitas vezes
alimentada por incentivos comerciais ao consumo. Como os indivíduos têm
uma vida útil mais curta do que comunidades ou espécies, a necessidade
de auto-satisfação parece mais imediata, e os prazeres resultantes
tendem a ser efémeros. Mas há quem defenda (por exemplo, na senda de
Joseph Schumpeter) haver também razões estruturais para a obsessão
democrática com o curto-prazo. Os ciclos eleitorais, necessários por
motivos de representatividade, prestação de contas e impessoalidade do
exercício do poder num Estado de Direito democrático, assim o exigem.
Este afunilar das democracias no curto-prazo explicaria as
insuficiências da política quanto à resolução de problemas com impacto
no longo-prazo, tais como as alterações climáticas, a perda de
biodiversidade e as condições de vida das gerações futuras.
As democracias liberais, porém, sujeitam-se a críticas tão certeiras
quanto incompletas. A verdade é que elas contêm vários instrumentos para
lidar com o futuro: provisões constitucionais com vigência
intergeracional; horizontes temporais distintos nos poderes executivo,
legislativo e judicial; taxas de poupança; orçamentos plurianuais;
contratos de concessão com prazos de decénios; previsões demográficas;
políticas de desenvolvimento sustentável; planos de contingência.
Os estados de emergência agora invocados suspendem tudo isto e
encolhem o poder ao “agora”. O tempo político reduz-se ao momento, ao
instante. Daí serem “estados de excepção”, ou seja, excepções também
temporais – provisórios, portanto. A originalidade da resposta pública à
Covid-19 consiste, contudo, na paralisação da economia, sobretudo da
produção. O tempo laboral, que Marx identificara n’O Capital como uma
mercadoria, perdeu-se. O desempregado (num sentido literal),
impossibilitado de aceder a meios de obtenção de rendimentos, não
consegue planear para o futuro. Tem de viver cada dia de cada vez, e
cada novo dia é como se fosse um primeiro dia. A ausência de planos para
o rescaldo do vírus comprime o tempo político. Ademais, a inflação da
linguagem da “crise” justifica apelos contínuos a procedimentos de
tomada de decisão semelhantes a estados de emergência, no que constitui
uma espécie de oxímoro: um “estado permanente de emergência”. Deixa de
haver futuro, o tempo mais não é do que um presente repetido.
O culto da velocidade próprio da civilização hodierna é já promotor
do curto- prazo. Se o tempo é mercadoria, quão mais rápida a produção,
menor a duração e o custo. À partida, a paralisação económica permitiria
ao tempo esticar-se. A reclusão far-nos-ia ver as coisas de uma
perspectiva da duração mais longa, a tomar o nosso tempo, a abrandar, a
suspender também a liberdade de circulação dos ponteiros do relógio. Mas
isto apenas vale na esfera privada. No espaço público, onde a liberdade
se justifica, apenas se vê encolhimento temporal. Como se as
democracias fossem viáveis apenas enquanto ditaduras do presente.
A ética do heroísmo
As sociedades gregas, quer arcaicas, quer clássicas, promoviam a
moralidade de maneira muito distinta da nossa. A virtude residia no
carácter, não nos conteúdos do dever, muito menos nos resultados das
acções ou das regras; as sanções sociais mais graves incidiam sobre o
nome (a vergonha), mais do que sobre os corpos ou a consciência (a
culpa). Para os gregos arcaicos, ilustrados e amestrados pelos poemas
homéricos, a ética confundia-se com uma estética da força e da
violência, formando como que um conjunto de valores
estético-comportamentais. O virtuoso moral era o herói, aquele cujo
engenho e cujos feitos se superiorizavam aos dos outros homens, mormente
em serviço ao bem comum.
O panorama judaico-cristão e as bases do liberalismo inverteram esta
tendência. Com o advento da modernidade, o valor da consciência e o
consentimento dos indivíduos como critério de legitimidade da autoridade
pública tornaram-se critérios morais mais relevantes. Num Estado de
Direito democrático, fundado sobre estas bases, a eficiência das
estruturas de serviços permite a qualquer profissional competente
atingir os fins (mesmo os morais) que justificam o serviço. O que
importa é a criação das condições adequadas a cada bom profissional para
fazer o seu trabalho bem. Não são necessários super-homens nem talentos
sobre-humanos.
Com a Covid-19, porém, voltou a linguagem do heroísmo, como que dando
seguimento à insistência na metáfora da guerra. Os cuidadores, os
profissionais de saúde, os que estão “na linha da frente”, são heróis –
colocam o bem comum acima dos interesses pessoais e sacrificam o seu
bem-estar e a própria vida pelo conforto de todos nós.
Infelizmente, o recurso a esta linguagem é certeiro e sintomático das
incapacidades que as democracias liberais reconhecem nelas próprias. O
desinvestimento na qualidade dos serviços públicos, mesmo daqueles cujas
actividades se dedicam à protecção de bens tão básicos como a vida e a
saúde, dá azo a que apenas os capazes de superarem os constrangimentos
das condições consigam ser valorizados. Quando tudo o resto falha,
apenas a força dos melhores impede os restantes de caírem. O heroísmo
moral dos prestadores de cuidados de saúde é a melhor ilustração de como
o monopólio da prestação de serviços (neste caso, pelas entidades
públicas), cessando a cooperação e a concorrência entre demais
entidades, conduz ao nivelamento por baixo das expectativas possíveis.
Perante tudo isto, o que esperar das democracias liberais perante os
desafios teóricos da Covid-19? Os filósofos decerto não terão respostas
prontas. Convém desconfiar dos que as tiverem. Resta esperar,
observando. De preferência, preservando aquilo de que mais dependem as
próprias democracias: confiança.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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