Uma vez superada a pandemia, o regime autoritário chinês seguirá
avançando sob o beneplácito de nações democráticas? Bruno Garschagen,
via Oeste:
Antecipo uma discussão que o mundo ocidental terá de estabelecer tão
logo a pandemia do novo coronavírus esteja controlada: o que, afinal,
fazer com a China? Como será o relacionamento com o Partido Comunista
chinês dali em diante? Os principais líderes políticos e empresários do
Ocidente continuarão a fechar os olhos para o totalitarismo chinês? Ou,
finalmente, reconhecerão que não se deve negociar nem depender do regime
chinês na dimensão atual?
A China é a segunda maior economia do mundo, com Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 14,96 trilhões em 2019 [https://bit.ly/2VKODPe].
Está atrás apenas dos Estados Unidos, cujo PIB foi de US$ 21,61
trilhões no ano passado. Nas exportações, porém, a China lidera: em
2018, exportou US$ 2,48 trilhões subsidiando pesadamente as exportadoras
chinesas. O segundo maior exportador eram os Estados Unidos, com
negócios de US$ 1,66 trilhão. Na importação, os EUA lideram com US$ 2,61
trilhões em compras. Logo atrás vem a China, com importações de US$
2,13 trilhões.
Muitas empresas internacionais produzem na China. Quando os pobres
trabalhadores chineses, vítimas do Partido Comunista, começaram a
adoecer, a produção foi comprometida, as importações pela China foram
reduzidas, e foi um deus nos acuda global. Muitos se deram conta do
grave problema que tinham em mãos.
A China atual é obra de Deng Xiaoping, que implementou uma agenda de
reformas econômicas no período em que mandou no partido e no país, de
1978 a 1992.
Para levar a cabo seu plano, segundo Robert Service no livro
Camaradas: uma História do Comunismo Mundial, Xiaoping devolveu
propriedades confiscadas de camponeses, permitiu a criação de empresas
privadas, criou zonas econômicas especiais com mão de obra barata,
reduziu a burocracia para investimentos, criou incentivos para atrair
investimento estrangeiro. Deu certo.
As mudanças fizeram com que o Produto Interno Bruto crescesse muito
mais do que o dos países ocidentais, a participação do país na produção
mundial cresceu vertiginosamente, a China tornou-se uma potência
econômica e o segundo maior detentor de títulos do Tesouro americano
(US$ 1,09 trilhão em fevereiro de 2020). Mas os ganhos econômicos
ficaram concentrados em pontos específicos do país, a miséria ainda é
uma triste realidade assim como a economia e a liberdade vigiadas. Nada é
feito na China sem a chancela do Partido Comunista. Nada.
As reformas empreendidas por Xiaoping tinham como objetivo principal
manter a ditadura do proletariado à moda chinesa, um oximoro chamado
“socialismo de mercado”, e fazer da China uma potência econômica. O
líder comunista pretendia, por meio das relações comerciais com nações
capitalistas, transformar o país em um relevante player político
internacional e ser uma voz de peso em organismos internacionais como a
ONU, da qual se tornou um dos cinco membros permanentes do Conselho de
Segurança junto com Rússia, Estados Unidos, França e Reino Unido. E,
mesmo quando propôs medidas que pareciam conceder alguma liberdade
civil, voltou atrás, declarou lei marcial e reagiu violentamente contra
aqueles que pretenderam questionar o regime, a exemplo dos estudantes
massacrados na Praça da Paz Celestial em 1989.
A dependência econômica mundial em relação à China não era segredo, mas negligenciava-se o tamanho da vulnerabilidade.
Todos os que se deixaram iludir pelo “socialismo de mercado”
descobriram, finalmente, quão frágil eram (e são) suas posições. E que
não dá para brincar de Fausto diante de Mefistófeles.
O tal do “socialismo de mercado” chinês significa tão somente um
mercado totalmente controlado. Nacional ou estrangeiro, só investe na
China quem a elite do Partido Comunista permitir. Um sistema que conta
com o beneplácito das democracias e das organizações internacionais,
muitas delas financiadas pelo governo chinês.
Uma delas é a Organização Mundial da Saúde (OMS), agência subordinada
à Organização das Nações Unidas (ONU). Seu atual diretor-geral, Tedros
Adhanom Ghebreyesus, foi escolhido com apoio do governo da China. Essa
relação talvez explique a tentativa inicial de Ghebreyesus de negar
qualquer responsabilidade do regime chinês em relação à pandemia, de
repetir as informações fornecidas pelo (e nos imoderados elogios feitos
ao) governo comunista, que prendeu o médico chinês Li Weilang por tentar
avisar outros médicos sobre a pandemia. E o ativista Chen Qiushi, que
divulgou informações sobre a infecção e mortes no país a partir de suas
visitas a hospitais, funerárias, residências de familiares das vítimas,
foi ameaçado pela ditadura e desapareceu em 6 de fevereiro. Eles não
foram os únicos a sofrer as consequências por desagradar ao regime.
Só depois, aliás, de uma visita que Ghebreyesus fez ao ditador Xi
Jinping no fim de janeiro que o governo comunista parou de negar e de
esconder a covid-19 e permitiu o acesso às informações de especialistas
da própria OMS. E, diante da suspensão determinada pelo presidente
Donald Trump da volumosa contribuição anual do governo americano (cerca
de US$ 900 milhões em 2019), o ditador chinês adicionou US$ 30 milhões
aos US$ 86 milhões da contribuição obrigatória. Não se trata de bondade,
mas de estratégia geopolítica.
Ocultação de informações e demora na adoção de medidas sanitárias não são novidade na carreira do diretor-geral da OMS.
Quando atuou como ministro da Saúde da Etiópia, entre 2005 e 2012,
sob um governo ditatorial, Ghebreyesus foi acusado de encobrir epidemias
de cólera entre 2006 e 2011 e, com isso, atrasar o combate adequado.
Contra os resultados clínicos (contra, portanto, a ciência que hoje ele
usa como mantra), ele e sua equipe tratavam o problema como mera
diarreia aquosa, segundo depoimento do jornalista Ludger Schadomsky, da
Deustsche Welle [https://bit.ly/2VQ9e4V], que cobriu na época a atuação de Ghebreyesus como ministro.
Por essa razão, quando de sua indicação ao comando da OMS,
Ghebreyesus foi duramente criticado pelo ativista de direitos humanos na
Etiópia Kassahun Adefris. À Deustche Welle, Adefris questionou a
nomeação de um ex-ministro que escondeu as epidemias de cólera
responsáveis por milhares de mortes no país. E a Human Rights Watch
criticou a escolha de alguém que trabalhou para um governo autoritário
conhecido por perseguir opositores. Tal como o da China, que vê as
democracias agirem em época de pandemia como o regime totalitário chinês
age normalmente no dia a dia.
O fato é que, se não houver um rearranjo geopolítico e econômico, com
o necessário deslocamento de negócios para países democráticos nos
quais se possa confiar, políticos e empresários dobrarão uma aposta já
perdida.
Porque manter os negócios como estão é alavancar a posição chinesa,
atribuindo ao Partido Comunista um poder político e econômico ainda
maior (e mais perigoso) do que tem hoje.
E, também, continuar a financiar um regime totalitário cujo desprezo
por seu povo e pela vida humana só tem paralelo com a Rússia de Lênin e
Stálin.
Jamais podemos esquecer o que é o regime chinês hoje e os 65 milhões
de pessoas assassinadas durante a liderança de Mao Tsé-Tung, segundo
estimativa da equipe que produziu O Livro Negro do Comunismo. A União
Soviética foi extinta, mas a ditadura do proletariado na China continua
em pleno vigor com um regime controlador, violento, implacável, vil,
assassino, corrupto, que manda prender, enviar para campos de trabalhos
forçados ou assassinar todo aquele que é considerado inimigo.
Diante de tudo isso, uma dúvida se impõe: caso reste provada alguma
responsabilidade do governo chinês na pandemia da covid-19 (que seja a
demora em alertar o mundo, como no episódio da sars entre 2002 e 2004),
os países ocidentais punirão a China de alguma maneira? A ONU
estabelecerá sanções? Os empresários retirarão seus investimentos? Ou o
silêncio complacente será o atestado público da covardia infame dos
líderes políticos e empresários dos países ocidentais?
Vencida a pandemia, é bem provável que a geopolítica e a economia
mundiais sejam profundamente alteradas. Ao Ocidente impõe-se uma escolha
ética: declarar independência diante do Partido Comunista chinês ou
continuar permitindo que o Partido Comunista chinês conquiste mais poder
e influência do que já tem.
Bruno Garschagen é cientista
político, mestre e doutorando em Ciência Política e Relações
Internacionais; professor de Ciência Política, escritor e autor do
best-seller Pare de Acreditar no Governo e do livro Direitos Máximos,
Deveres Mínimos — O Festival de Privilégios que Assola o Brasil, ambos
publicados pela Editora Record.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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