Mamadou Ba: arengas do racismo identitário. |
"Não ando à procura de nenhuma identidade, sobretudo não ando à procura
de nenhuma identidade que esteja fixada nos meus genes, no meu tom de
pele ou no facto de ter nascido com um cromossoma X e um cromossoma Y.
Não quero sobretudo ser tido como alguém “racializado branco”
por oposição a quem se tem por “racializado negro” e usa essa condição
como arma política". Texto de José Manuel Fernandes, editor do Observador:
Há uns tempos que ando a pensar recolher um pouco de saliva para
meter num tubinho e enviar para uma daquelas empresas que estudam o DNA e
identificam as nossas origens. Tenho curiosidade de saber que
percentagem de sangue judeu tenho (suspeito que quase todos em Portugal
temos algum sangue judaico), assim como identificar a possível origem do
meu tom de pele um pouco mais escuro (será árabe? Berbere? Indiano?
Subsaariano?), se é que tem alguma para além da tez mais curtida das
nossas Beiras. Mas tudo isto não passa disso mesmo: de curiosidade. Não
ando à procura de nenhuma identidade, sobretudo não ando à procura de
nenhuma identidade que esteja fixada nos meus genes, no meu tom de pele
ou no facto de ter nascido com um cromossoma X e um cromossoma Y. Não
quero sobretudo ser tido como alguém “racializado branco” por oposição a quem se tem por “racializado negro” e usa essa condição como arma política. Como Mamadou Ba.
Eu sei que a maioria dos portugueses nunca tinha ouvido falar do
assessor parlamentar do Bloco de Esquerda até que este surgiu nas
notícias como o dirigente do SOS Racismo que escrevia posts no Facebook
sobre a “bosta da bófia”. Para esses todo o debate se centrou na
semiótica daquela expressão, no dinheiro que ganhava como assessor e na
suprema ironia de ter sido vítima de uma “grandolada” ao contrário,
tristemente protagonizada por extremistas do PNR e que o levou a pedir
proteção à dita “bófia”. Ou ainda na lamentável esterqueira das redes
sociais, onde não faltaram grosserias, javardices, mesmo ameaças
intoleráveis. Como eu próprio também já conheci esse tipo de ambiente,
perdoem-me se não o valorizo em demasia.
O que me interessa é o que fica, e o que fica é o que já cá estava
antes de tudo o que se passou depois dos incidentes no bairro Jamaica. E
o que fica, e o que é mais perturbante, é aquilo a que me referi na
última frase do meu texto da semana passada: “discursos como os de Mamadou Ba fazem mais racistas do que anti-racistas”. Por uma razão simples, que quero desenvolver hoje: porque são racistas.
Temos de recuar no tempo para compreender melhor o que está em causa.
E temos de recuar porque temos de regressar a Martin Luther King e ao seu famoso discurso I Have a Dream.
Esse sonho era o da concretização da crença da nação americana, escrita
na sua declaração de independência, mas nunca realmente materializada:
“Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são
criados iguais.” Por isso ele depois acrescentava: “Eu tenho um sonho
que meus quatro pequenos filhos um dia viverão numa nação onde não serão
julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter. Eu tenho
um sonho hoje.”
Mais de meio século passado não é isto precisamente que todos defendem? Não, não é, mesmo quando parece que é.
Antes de Martin Luther King, séculos a fio (milénios?), houve a
preocupação de dividir a humanidade em raças. Preocupação quando não
obsessão. Só que depois do movimento dos direitos civis, e também de
tudo o que a ciência nos permitira saber sobre as diferenças entre os
diferentes tipos humanos, o novo mantra passou a ser “há apenas uma
raça, a raça humana”. Por isso quando, em 2003, o genoma humano foi
finalmente descodificado, recordo-me de ter feito uma capa do Público
com o título “O genoma não tem raça”, e ainda hoje me orgulho disso. Até
porque de então para cá a evidência científica não tem deixado de se
avolumar no sentido de considerar que não fez mesmo sentido o conceito de raça.
Contudo, nas universidades americanas, onde os sinais dos tempos
surgem sempre primeiro, é hoje anátema defender a ideia de “há apenas
uma raça, a raça humana”. A Universidade da Califórnia em Los Angeles
(UCLA) chegou mesmo ao ponto de distribuir instruções ao seu pessoal proibindo essa expressão ou outras semelhantes.
O conceito de raça, a raça como referência identificadora, e tudo o
que só posso considerar como políticas racistas, regressaram assim pela
porta dos fundos e pela mão das chamadas “políticas identitárias”. Estas
caracterizam-se por definir identidades “oprimidas” e identidades
“opressoras”. De acordo com as novas doutrinas, a sociedade é fatiada de
acordo ora com reais problemas, ora com modas culturais, ora com
simples agendas políticas. Em certos meios fazer parte de uma identidade
“oprimida” tem imediatas vantagens pois ganha-se o estatuto de vítima
que é necessário resgatar, mesmo que se seja um privilegiado, ao mesmo
tempo que passou a ser motivo desqualificativo quase universal ser
homem, branco e heterossexual (não estou a brincar: a paranoia chegou ao
ponto de recentemente uma reportagem da Sábadosobre
uma conferência em Portugal de Jordan Peterson procurar desqualificar a
assistência por esta ser constituída sobretudo por “homens brancos”,
como se no nosso país não vivessem sobretudo… brancos).
A divisão do mundo em “oprimidos” e “opressores”, “vítimas” e
“carrascos”, estende-se aos descendentes, séculos e séculos passados,
dos supostos actos de opressão, e qualquer resistência a um gesto de
contrição é tido como uma manifestação de racismo. Foi assim que a
visita de Marcelo Rebelo de Sousa a um antigo entreposto de escravos no
Senegal, onde reconheceu a injustiça da escravatura, desencadeou uma
polémica que teve por mote não apenas o Presidente, por este ainda “não ter descolonizado a sua mente”,
como levou a um obsessivo exercício de torturar a história de
demonstrar que Portugal foi a pior de todas as potências esclavagistas.
Mais: o esforço para desconstruir a nossa memória colectiva dirigiu-se
mesmo contra alguém que até esteve muito à frente do seu tempo na denúncia dos crimes do colonialismo, o Padre António Vieira.
Principal animador da iniciativa? Mamadou Ba. Justificação? Porque ele
entende que as minorias que vivem no nosso país não se reconhecem na
história que lhe contamos, não se reconhecem nos nossos heróis, entendem
que não fazem parte do nosso passado e, por isso, dizem-se excluídas.
Eu sei que não é fácil seguir os raciocínios que vão ligando estes
pontos e levam da defesa dos “oprimidos” às politicas identitárias, das
politicas identitárias à necessidade derrubar estátuas e rever memórias,
e daqui passam ao discurso sobre a “racialização”, mas sei que num dia
começamos por convencer a Conselho da Europa que temos livros escolares
racistas (apesar de nenhum critério objectivo sustentar essa tese)
e não tarda nada podemos estar a avaliar tons de pele ou a medir a
grossura dos lábios para saber se alguém tem direito a um emprego, um ponto a que se chegou no Brasil no tempo do PT,
numa extraordinária aplicação invertida de métodos utilizados na
Alemanha nazi. Em nome de quê? De preencher as quotas destinadas às
minorias e procurar satisfazer os seus discursos de vitimização.
Nas entrevistas que deu depois da polémica da “bosta da bófia” (como este),
Mamadou Bá tornou-se muito mais cuidadoso, mediu as palavras e até
pareceu moderado. Ou seja, foi político. Chegou a parecer que defendia a
polícia e só criticava os seus excessos, o que só pode ser hipocrisia
se nos recordarmos que ele foi um dos 162 subscritores (sim, foram só
162) da petição pública de 2016 intitulada “Da Celebração ao Combate”
e que defendia, entre outras coisas, “o fim imediato das operações do
CIR (Corpo de Intervenção Rápida) nos nossos bairros, como primeiro
passo rumo à abolição total da PSP e GNR, e sua substituição por
mecanismos de garantia da segurança colectiva, baseados nas
comunidades”. Vale a pena repetir: “abolição total da PSP e GNR”. Ou
seja, da “bófia”. Ou seja, da tal força policial a que agora pede
proteção – uma proteção que espero sinceramente que esses homens lhe
garantam.
Como não sou dos que metem a cabeça na areia, sei que em Portugal há
racismo como há em todas as sociedades humanas (o que daria uma
interessantíssima discussão), mas há mais três coisas que sei e que são
as que importa sublinhar hoje.
A primeira é que as políticas identitárias centradas na celebração do
“oprimido” e na vitimização acentuam a segregação racial pois fazem da
raça um critério central da vida social. Têm mesmo como consequência
inevitável uma espécie de efeito boomerang já bem evidente nos Estados
Unidos, onde nunca houve tantos brancos a considerarem que a branquitude
é uma parte importante da sua identidade (são já 55% do total).
A segunda é que usar lentes que vêem racismo em todo o lado cria mais
problemas do que resolve e tem pouca ou nenhuma adesão à realidade. Foi
Mamadou Bá que fez dos incidentes do bairro Jamaica um caso de racismo,
pois a comissão de moradores fez questão de dizer que o que lá se
passou não teve nada a ver com racismo. Foram os activistas que
mobilizou que vieram primeiro para o Terreiro do Paço e depois para a
av. da Liberdade, onde não esteve praticamente ninguém do bairro, tal
como na concentração em frente à câmara do Seixal só estariam uns cinco
ou seis habitantes do Jamaica entre as duas centenas de manifestantes.
Aquela não era a luta deles.
A terceira decorre das duas anteriores: os Mamadous Bás deste mundo
têm tudo menos o sonho de Luther King de uma sociedade pós-racial, nas
suas palavras inspiradas de “fazer chegar mais rápido o dia em que todos
os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e
católicos, poderão dar-se as mãos e cantar as palavras da antiga canção
espiritual negra: Finalmente livres! Finalmente livres! Graças a Deus
Todo Poderoso, somos livres, finalmente.”
Sim, porque “dar-se as mãos” não faz parte do seu programa. O seu
programa é antes cobrar-nos uma factura, apresentando-se-nos como
vítimas. É para isso que precisam do racismo identitário.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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