"Em meio às reflexões sobre a inserção internacional do Brasil há uma
questão adormecida, uma pergunta incômoda, mas que necessita ser feita –
inclusive porque às vezes uma pergunta pode ser mais valiosa do que
muitas respostas: o Brasil pertence ao Ocidente?". Artigo do chanceler
Ernesto Araújo, publicado em seu blog:
(Preparei este texto há cerca de quatro meses, para uma publicação
que não se concretizou, mas creio que ainda pode ser pertinente ao
debate sobre os rumos do Brasil diante dos horizontes que se abrem com a
eleição de Jair Bolsonaro.)
Em meio às reflexões sobre a inserção internacional do Brasil há uma
questão adormecida, uma pergunta incômoda, mas que necessita ser feita –
inclusive porque às vezes uma pergunta pode ser mais valiosa do que
muitas respostas: o Brasil pertence ao Ocidente?
Numa perspectiva tradicional dos estudos de relações internacionais,
fazer parte do Ocidente significava, até algum tempo atrás, fazer parte
de um bloco geopolítico comandado pelos Estados Unidos, numa posição um
pouco clientelista que causava aversão a um país com vocação de política
externa independente como o Brasil. Felizmente essa perspectiva foi
superada gradativamente após o final da Guerra Fria, mas deixou atrás de
si uma certa cautela em relação ao conceito de Ocidente, como se este
evocasse necessariamente uma relação centro-periferia incompatível com
nossa autopercepção.
Mais recentemente, suspeitávamos que o Ocidente estivesse em
inevitável decadência, num cenário onde o futuro pertenceria à Ásia, à
China, à Índia, aos países francamente não-ocidentais, e assim
relutávamos em dizer-nos francamente ocidentais para não apostar em
cavalo fraco. Hoje não se fala já tanto nessa emergência de um mundo
pós-Ocidental. Suponho que a razão desse súbito silêncio se encontre na
reação exacerbada dos formadores de opinião à figura de Donald Trump.
Continuar propagando a ideia de um mundo já não regido pelo Ocidente
alimentaria, na visão do establishment, as pretensões de Trump de
reverter esse quadro, de contrapor-se ao poder da China e restaurar a
centralidade de uma América great again. O establishment anti-Trump
tenta hoje difundir a imagem de que está tudo bem, tudo normal, de que o
único problema do Ocidente é o próprio Trump, tentando ocultar algo que
até ontem parecia óbvio: a enorme perda de poder relativo – econômico,
diplomático e militar – dos ocidentais em favor dos não-ocidentais ao
longo das últimas duas décadas, principalmente durante o governo Obama. A
elite político-econômica internacional – inclusive nos EUA – queria que
o presidente dos Estados Unidos fosse um afável gestor do declínio,
pois esse declínio está na essência do globalismo supranacional ao qual
essa elite adere, e não um restaurador do poderio americano e ocidental.
Vendo-se confrontados por um líder que não está disposto a ceder o
comando do mundo, procuram agora mostrar que as ameaças a esse comando
são puramente imaginárias.
Também se deve lembrar que, historicamente, o perfil internacional do
Brasil sempre foi bastante dialético, o perfil de um país que procurava
fazer parte de tudo e colocar seu traço em todas as geometrias, num
conjunto de pertencimentos não-excludentes que, segundo alguns,
representa a essência de nossa nacionalidade e de nossa política
externa. Não queremos estar fora de nenhum grupo e portanto não
poderíamos ter uma identidade exclusiva que nos alijasse de outros
cenários e de outras áreas de atuação. Nessa hipótese, ao admitir sermos
parte do Ocidente, estaríamos automaticamente dizendo que não fazemos
parte do não-Ocidente, e isso nos fecharia certas avenidas que queremos
manter abertas, embora, pelo mesmo motivo, não queiramos tampouco dizer
explicitamente que não pertencemos ao Ocidente.
Igualmente se poderia argumentar que não somos do Ocidente porque, em
certa visão, o Ocidente se confunde com os países ricos, com o
"Primeiro Mundo", e sendo pobres necessariamente não poderíamos ser
ocidentais. Curiosamente a ideia de tornar-se membro do Primeiro Mundo
nunca atraiu nosso estamento de política externa. Esse impulso
permaneceu durante muito tempo como um legado maldito da era Collor,
como se fosse um pecado querer tornar-se um país próspero e poderoso,
como se fosse um absurdo ter objetivos ambiciosos e voluntariamente
devêssemos condenar-nos a um eterno "em desenvolvimento" onde o estado
de desenvolvido nunca é alcançado, um flagelo de Sísifo auto-imposto ou
uma espécie de voto de pobreza diplomático. Hoje abandonamos felizmente
esse voto e pedimos adesão à OCDE, tradicional clube do Ocidente
desenvolvido (o Ocidente em sua dimensão econômica, que inclui também
alguns países asiáticos), uma grande e importante inovação da atual
gestão da política externa brasileira. Mas pleitear adesão à OCDE não
significa ainda assumir nossa alma ocidental.
O Brasil também reluta em qualificar-se como ocidental pelo fato de
que nunca quis associar-se à chamada "aliança atlântica", nem sequer
explorar essa possibilidade – mesmo possuindo, com seus 7.000
quilômetros de costa, o mais longo litoral atlântico. Diante dessa
concepção militar ou securitária do Ocidente, estruturado
fundamentalmente como a aliança euro-americana que se opunha ao bloco
soviético, o Brasil sempre preferiu manter-se distante, admitindo ter
afinidades com o bloco ocidental mas sem posicionar-se decididamente do
conflito Leste-Oeste, achando que isso seria limitante e arriscado, e
que teríamos mais a ganhar preservando nossas ambiguidades.
Por outra parte, talvez persista na nossa atitude frente à ideia de
Ocidente um ranço antimonárquico. De certa forma, no nosso inconsciente
histórico, Ocidente é Europa e Europa é ainda aquele conjunto de casas
reais com as quais nossa casa imperial se relacionava e se correspondia
como parte da mesma família. A instauração da república em 1889 tornou
anátema qualquer tipo de laços desse tipo, cortou uma linha de
identidade autêntica e a substituiu à força por uma fraternidade
americanista um pouco artificial. (Nisso como em tantas coisas – por
exemplo, ao trocar a cruz da Ordem de Cristo no centro da bandeira pelo
lema que consagra uma outra "ordem", neste caso positivista – a
proclamação da república foi um duro golpe simbólico sobre o Brasil
profundo. O bom é que, ao longo do tempo, o espírito conciliador
brasileiro apagou esse trauma e reatou algumas antigas linhas, tanto que
até hoje, ao vestir a camisa da seleção brasileira, carregamos no
peito, sem nos dar conta, a velha cruz da bandeira imperial, a mesma
cruz das caravelas, a mesma dos bandeirantes e dos cavaleiros
templários.)
A soma desses medos, rupturas, tergiversações e recusas não nos
permite ainda uma resposta clara sobre nossa ocidentalidade.
Aparentemente, optamos sempre por definições do Ocidente que nos
excluam, para não termos o trabalho de investigarmos nossa própria
identidade e a partir dela – não a partir de critérios alheios – definir
esse pertencimento. Se por várias razões temos tanta dificuldade em
reconhecer-nos como ocidentais, tampouco estamos preparados para
pronunciar claramente um "não" ao Ocidente. Relutamos em fechar atrás de
nós a porta da casa ocidental e ficar fora de algo que vagamente
percebemos como sendo nosso. Encontra-se talvez aqui a semente de uma
outra resposta, pela intuição de uma identidade bem mais profunda do que
as considerações geopolíticas, econômicas ou étnicas de que acima
falamos.
II
Há que repropor o problema do Ocidente. Se a dúvida existencial
quanto a ser ou não ser Ocidente sempre foi uma questão espinhosa para
os brasileiros, hoje o é também para aqueles que sempre se consideraram
indiscutivelmente ocidentais, os europeus e os americanos do norte. O
pertencimento ao Ocidente deixou de ser óbvio para os ocidentais.
Reprogramada pelo marxismo cultural, a mentalidade de europeus e
norte-americanos passou a rejeitar sua própria herança cultural e
histórica, identificando o Ocidente exclusivamente com os males do
colonialismo, do racismo, do imperialismo. A maioria dos europeus e os
"liberais" norte-americanos, incluindo evidentemente a elite
intelectual, passaram a sentir o Ocidente não mais como uma experiência
multissecular arraigada nas cem mil estradas da história, mas apenas
como uma opção moderna e asséptica pelo que chamam a "democracia
liberal". Enxergam apenas um Ocidente caracterizado por "valores", e não
por uma cultura, não pelo gigantesco e magnífico tecido de mitos e
sentimentos que começou talvez ainda antes dos gregos, talvez em Creta,
para onde Zeus, transformado em Touro, levou a princesa Europa (e é
curioso, a propósito, olhar a esquálida representação de Europa montada
em Zeus-Touro na escultura colocada em frente ao Conselho da União
Europeia em Bruxelas, obra extremamente representativa de uma
civilização que não se preza a si mesma, uma Europa sem face e oca sobre
um touro igualmente oco e esburacado). Nada de mitos, nada de
histórias, apenas "valores" abstratos, os famosos "valores democráticos"
nunca suficientemente definidos (pois examinar valores para tentar
defini-los já é um pouco questioná-los). Aliás, se a busca de definições
a partir do exame lógico dos conceitos é marca fundamental do
pensamento ocidental, a elevação dos "valores" ao patamar do
indiscutível atesta o quanto o Ocidente atual se afasta de suas próprias
tradições intelectuais.
O certo é que o Ocidente não nasceu com a Guerra Fria. Há que ir
muito mais longe para poder discutir o que está em jogo. Nas antigas
tradições pagãs da Europa, ficava sempre no Oeste a terra da felicidade,
as ilhas afortunadas, os Campos Elísios de onde sopra o vento Zéfiro
que alegra os homens, o jardim dos pomos de ouro (o jardim das
Hespérides, onde o grego hesper corresponde ao latim vesper, a tarde, a
direção do entardecer, o Ocidente, da mesma raiz do germânico west de
onde provém através dos visigodos o português oeste). Aqui pode-se
apontar uma diferença determinante entre os paganismos europeus (grego,
germano, celta) e os do oriente antigo, pois para estes últimos a
direção mais sagrada sempre foi o nascente, o Oriente. De certa forma o
Ocidente nasceu com os gregos não só pela fundação de todas as tradições
culturais que se conhecem, mas também por ser o primeiro povo que
conscientemente identificou o sagrado, o numinoso, ao menos em parte,
com a direção do sol poente. Sob o risco de generalizar barbaramente as
complexas questões da arqueoastronomia e da arquitetura religiosa
antiga, pode-se dizer que os gregos fizeram um giro de 180 graus na
direção do sagrado, e com isso redirecionaram a história.
O giro da direção sagrada de leste para oeste guarda relação com a
fundamental mudança na vivência do tempo que diferencia os gregos das
civilizações médio-orientais. A primazia simbólica do leste tende a
colocar o centro de gravidade de uma cultura no passado, na origem do
dia eternamente repetida; a primazia do oeste desloca o centro para o
futuro, o destino do sol sempre buscado e nunca alcançado. Com o giro,
nasce o sentimento histórico. Ao lançar-se ao mar os gregos lançam-se
também ao tempo. A história como sensação de estar dentro de uma marcha
rumo ao desconhecido e de poder influenciá-la, a expectativa permanente
do novo por oposição ao "eterno retorno": trata-se aqui também de uma
invenção grega. Os gregos não criaram apenas a palavra "história" e a
narrativa histórica, mas trouxeram ao mundo o próprio conteúdo desse
conceito. Como em tantos outros exemplos, a palavra grega aqui é
criadora e instauradora de uma realidade, e não simplesmente
designadora. A história, portanto, é uma ideia essencialmente ocidental e
o Ocidente é essencialmente histórico, uma milenar epopeia dialética
onde se contrapõem, convivem e se recombinam o Ser e o Tempo. Não por
acaso os grandes projetos de aniquilação ou superação do Ocidente – o
marxismo e sua atual reconfiguração no globalismo – pregam e desejam o
fim da história.
(O Ocidente também é essencialmente histórico graças às suas raízes
bíblicas. A Bíblia é basicamente a história da salvação, numa estrutura
dramática onde tudo se relaciona com tudo e onde a relação do homem com
Deus se exerce na história, no tempo: eis a grande inovação do judaísmo,
que transforma a divindade em algo histórico e a história em algo
divino. Essa concepção se transpõe desde o início para o cristianismo,
mas vem sendo esquecida em nossa pobre visão de mundo contemporânea,
onde tudo é compartimentado, onde política e fé não se tocam, onde nada
se relaciona com nada e onde o tempo deixa de ser a palpitante vivência
do destino para tornar-se apenas a contagem dos minutos. Como diz Santo
Agostinho, prefigurando a moderna cosmologia, o mundo foi criado com o
tempo, não havia tempo antes da criação. De certa forma, o tempo –
vivido como história – é a própria criação, portanto a história tem
origem divina, e assim o projeto do fim da história constitui um grande
ataque contra a divindade criadora.)
A fé cristã dá continuidade àquela reorientação da simbologia sagrada
rumo ao oeste. Ao contrário da maioria dos templos pagãos, orientados
para o nascente, a maioria das igrejas cristãs são construídas de frente
para o poente. O giro ocidental manifesta-se igualmente no culto a
Maria: na hora do entardecer os católicos cantam em louvor à Virgem,
identificada com a estrela vespertina, ou seja, o planeta Vênus que
brilha pouco acima do horizonte ocidental no pôr-do-sol, a Stella Maris
que indica à humanidade navegante o caminho do Cristo.
A ânsia inextinguível dos gregos pelo mar os conduzia necessariamente
para oeste a partir de seu canto no mediterrâneo oriental. Uma lenda
conta que Ulisses, muitos anos depois de regressar a Ítaca e reencontrar
Penélope, decidiu lançar-se novamente à paixão do mar, chamou os amigos
e aventurou-se rumo ao Oceano para além das colunas de Hércules,
chegando a fundar, no extremo ocidental do continente, a cidade a que
chamou Ulissipo, nome que depois evoluiu para Ulissipona, Lissipona,
Lisbona, Lisboa. Fernando Pessoa recorda essa lenda fundacional da
lusitanidade e assevera: "o mito é o nada que é tudo". Ulisses ou não,
os portugueses herdaram esse anseio ocidental e dele o Brasil é fruto.
Somos o extremo ocidente daquela "ocidental praia lusitana". Somos
outras coisas também? Certamente. Mas sem a origem não somos nada, um
ser cortado de sua origem não é ser, apenas subsistir. Se o mito é o
nada que é tudo, os brasileiros somos gregos por tabela, somos filhos
dos Lusíadas e netos da Odisseia, herdeiros legítimos do milagre grego,
romano, europeu, ibérico, ocidental.
(Cabe aqui uma nota sobre Donald Trump e a Europa. Não sei se o
presidente Trump leu Homero, imagino que sim, mas de qualquer forma o
Ocidente que ele concebe tem lugar para Homero, ao contrário do Ocidente
derivado da crítica cultural e do marxismo da escola de Frankfurt, ao
contrário também do Ocidente dos "valores liberais" de alguns estadistas
europeus. A Dialética do Iluminismo de Adorno e Horckheimer, texto
fundamental do marxismo cultural, em grande parte é uma tentativa de
desconstruir e condenar a Odisseia como uma celebração do machismo e do
colonialismo. E, com a Odisseia, jogam no lixo tudo, Platão,
Aristóteles, São Paulo, Santo Agostinho, toda a cultura e tradição e
história, todos os reis e feitos e povos e batalhas, tudo para eles não
passa de enganação burguesa. Quantas de nossas instituições ocidentais
ditas liberais caem, sem perceber, nessa autocondenação suicida? Será
que os estadistas europeus leram Adorno e Horckheimer? Mesmo que não
tenham lido, parecem seguir inconscientemente pelo caminho deles. Trump
desafia os europeus a reatarem com sua história, seus heróis, suas
origens, a fecharem os livros da Escola de Frankfurt e reabrirem as
epopeias – por isso tantos europeus o detestam, alguns outros o
admiram.)
Muitos hoje enxergam no nacionalismo, no sentimento nacional, perigos
horríveis e se afastam amedrontados. Há perigo? Claro que sim. Há
sempre perigo em ser o que se é. Mas a alternativa é não ser nada, é
reduzir-se a um esquema politicamente correto, um estado sem nação, um
país sem povo. Dizia Hölderlin: Wo aber Gefahr ist, wächst das Rettende
auch, "Mas ali onde há perigo, ali também surge o que salva." Estamos
entrando em um mundo mais perigoso? Sim, felizmente. No Brasil como em
todo o Ocidente, nossas raízes demandam essa aventura. Abandonemos nossa
zona de conforto como Ulisses quando saiu de sua aposentadoria em Ítaca
para fundar a epopeia atlântica e enfrentemos nossa complicada
ocidentalidade. Um Brasil desprendido do Ocidente é um Brasil
artificial, superficial, um Brasil de plástico.
Guimarães Rosa, entre outros, cultivou a mística de um Brasil
profundo e necessariamente ligado aos mananciais europeus, o grande
sertão como uma imensa Ibéria, cultivou-o e reinventou-o na sua língua
labiríntica e nas estranhas correspondências que fazem as figuras do
velho mundo ressurgirem na nossa vastidão. Ariano Suassuna com sua Pedra
do Reino buscou o sonho de uma monarquia cabocla vinculada às
profundidades do tempo mítico. Ao longo da história brasileira, apenas
os nacionalismos mais superficiais e caricatos (como o de Policarpo
Quaresma em Lima Barreto) rejeitaram a herança ocidental.
As outras heranças, como a ameríndia, a africana, a japonesa ou a
libanesa, não deveriam ser vistas como algo que nos desconecta da
herança ocidental, mas como parte de um destino que a potencializa.
Seria preferível, aliás, falar de aventura ocidental, mais do que
herança, pois a “herança” traz uma conotação estática, de algo a ser
simplesmente gerido, enquanto a “aventura” no lança no âmbito da vida em
permanente criação, de algo gerado, um processo orgânico em que
confluem todas as linhagens. O Brasil e as Américas em geral
representam, talvez, não um mero acidente, mas o fulcro essencial dessa
aventura.
De fato, o "projeto América" de que o Brasil faz parte surge no
início da civilização ocidental, novamente no canto de Homero, quando os
heróis primeiro empurraram suas quilhas até o mar salgado e tocaram as
ondas divinas, néas men pámproton erýssamen eis hála dían (Odisseia, IV,
577). O impulso ocidental não nasce na ganância de riqueza, mas no
desejo de aventura e transcendência, da aventura como transcendência e
vice-versa, de rumar ao sagrado através do desconhecido que em si mesmo é
sagrado, pois o oceano que esconde as ilhas afortunadas é também o que
as proporciona e revela. Por isso o mar e a navegação perfazem um dos
mais poderosos símbolos ancestrais do Ocidente, uma civilização marítima
por vocação inextirpável.
Dizer que o Ocidente está baseado na democracia até pode ser correto,
mas é muito incompleto. O Ocidente está baseado em Homero e em tudo o
que veio depois, e um aspecto dessa tradição é a democracia, criação do
gênio grego não por acaso, mas como congênere das outras criações. A
democracia é essencial ao ocidente de hoje porque faz parte daquela
essência original que irrompeu com os gregos e que produziu, ao lado da
democracia, também a filosofia, a ciência, as artes, a teologia cristã, o
direito, a própria língua grega que ainda falamos todos os dias quando
dizemos por exemplo "lógica" ou "mistério" e sem a qual a vida do
espírito seria impossível – tudo isso fruto do mesmo impulso de
maravilhamento e liberdade. Não podemos, ou não devemos, ficar só com a
democracia e jogar fora todo o resto, toda a cultura ocidental
intimamente vivida através de vinte e tantos séculos, pois o sentimento
democrático é apenas parte de uma paixão e de um romance muito maiores.
(Não cabe tratar aqui da premente questão referente à capacidade de
outras civilizações para a democracia. A ordem liberal global pressupõe,
em princípio, a capacidade universal para a democracia, e nesse ponto
eu, pessoalmente, concordo. O problema é que a mesma ordem liberal não
vive de acordo com esse princípio. Podemos discutir isso em outro
momento.)
Em suma, por mais que se debata se o Brasil pertence plenamente ao
Ocidente numa concepção político-diplomática, é inegável que pertence ao
Ocidente, de maneira íntima e incontornável, no plano
cultural-simbólico. A concepção do Ocidente como um conjunto de
"valores" deveria estar incrustada na concepção cultural-simbólica,
porque não se sustenta sozinha. Há que reembasar o Ocidente no terreno
cultural-simbólico, fertilizando o terreno político-diplomático, cuja
atual aridez, ao lado de uma confiança excessiva em "valores"
assépticos, não permite sustentar-nos no curso desta aventura
ancestral.
O Ocidente é como um barco de Ulisses abandonado na praia (ou, para
nós brasileiros, uma jangada de Ulisses, retomando o título do romance
de Viana Moog), um barco que talvez ainda possamos empurrar de volta ao
divino mar salgado, eis hála dían.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário