As crises institucionais nos principais centros da civilização criam um
momento de arrepiante coincidência histórica, mas é bom manter a cabeça
fria. Texto de Vilma Grizynski, via Mundialista:
A violência desencadeada pelos coletes amarelos na França, a Grã-Bretanha surtada por causa do Brexit e as encrencas de Donald Trump criaram um alinhamento astral de arrepiar.
O que é circunstancial e o que é sistêmico? Impossível cravar no
calor dos acontecimentos. Os coletes amarelos que começaram bloqueando
estradas para protestar contra um aumento nos combustíveis terminaram
exigindo a renúncia de Emmanuel Macron, eleito há apenas um ano e meio
com mais de 60% dos votos.
Os protestos viraram arrastões, tanto literalmente, pelos saques e
vandalismo, quanto politicamente, ao puxarem participantes antagônicos,
aproveitadores ou ambos.
A certa altura, no protesto do último sábado, que não derrubou a
Bastilha de novo como chegou a ser prognosticado, reuniam-se na Place de
la République coletes amarelos, revoltados inicialmente com uma taxa
para diminuir emissões de carbono, com zadistas, um movimento de
ecologistas radicais especializados em grandes ocupações (o nome vem de
Zonas A Defender).
Pelo menos não quebraram outra Marianne, a escultura que representa a
república francesa. Mas ver um monumento tão simbólico como a estátua
de nove metros de altura, com um ramo de oliveira na mão, envolto em
chamas, cercado por um mar de coletes fluorescentes, criou uma imagem
impressionante.
Já tem outra manifestação marcada para o próximo sábado, assim designada: “Quinto ato, Macron demissão”.
Vale lembrar que, fora a imagem de prepotência e do discurso
intelectualizado à la francesa, o presidente não foi pego em nenhuma
falcatrua, seu partido não saqueou recursos públicos e ele está fazendo,
de forma geral, exatamente o que prometeu durante a campanha eleitoral.
Hoje, sairá do silêncio da última semana e anunciará medidas “imediatas
e importantes”, talvez algum tipo de bônus para o salário mínimo e
aposentadorias.
Vai adiantar? O movimento já estaria refluindo?
Muita sociologia vai rolar para definir que movimento é esse, que
trouxe para as ruas francesas, um dos berços da democracia, um pouco da
fúria dos manifestantes da Primavera Árabe contra ditadores vitalícios,
bastante da horizontalidade espontânea dos protestos brasileiros contra a
corrupção (um primor de civilidade em comparação com os franceses) e
outro tanto da maioria silenciosa e insatisfeita que votou em Donald
Trump e no Brexit.
Tudo, obviamente, ao estilo “revolução do Facebook”, ou YouTube, ou
WhatsApp. Enfim, as redes sociais que transformaram a participação das
pessoas comuns na política, dotando-as de uma voz sem precedentes – e
também de pulsões imediatistas, em certos casos maximalistas.
Alguns vídeos de coletes amarelos poderiam ser transpostos, com
mínimas adaptações culturais, para a greve dos caminhoneiros ou a
mobilização dos bolsonaristas no Brasil.
No auge da crise, alguns opinadores chegaram a sugerir que Macron
renunciasse, uma hipótese considerada inteiramente absurda. Mas o
simples fato de ser mencionada já dá uma dimensão do susto.
Mais real, inclusive pela diferença entre os sistemas
presidencialista e parlamentarista, é a possibilidade de que Theresa May
seja forçada a renunciar nessa terça-feira.
Integrantes do gabinete dela falam nisso abertamente, antecipando que
a proposta dela para o Brexit seja esmagada por uma acachapante maioria
dos votos na Câmara dos Comuns, unindo na rejeição a oposição
trabalhista e a ala dos conservadores inconformados com o projeto.
O último levantamento dava 211 votos a favor e 428 contra. Que chefe
de governo pode sobreviver a um massacre desse tamanho numa questão de
importância existencial?
Com magnífica e precisa eloquência inglesa, o economista Mervyn King,
ex-presidente do Banco da Inglaterra, assim definiu o defeito de base
da proposta de Theresa May: “Existem bons argumentos para continuar na
União Europeia e bons argumentos para sair. Mas não existe nenhuma
justificativa para perder os benefícios de continuar sem obter os
benefícios de sair. E, no entanto, é exatamente isso que o governo está
propondo”.
Mervyn King só não mencionou o principal argumento em favor de May:
depois de desperdiçar dois anos negociando uma porcaria de acordo,
voltar à estaca zero agora poderia ser pior ainda.
Outra alternativa, tramada sem nenhuma tentativa de disfarce, seria convocar um segundo plebiscito.
A Corte de Justiça União Europeia anunciou, com rapidez inédita, que
existe a possibilidade legal de que o Artigo 50, sob o qual a
desvinculação britânica está sendo conduzida, pode ser revogado
unilateralmente pelo Reino Unido.
Haveria, assim, um prazo maior para negociar ou quem sabe até convocar o povo para se pronunciar de novo.
Sob o risco, obviamente, de enfurecer a plebe que votou pelo Brexit e achou que a questão estava decidida.
Todas as possíveis saídas, no momento, parecem criar mais encrencas
do que soluções. Não é impossível até que o Parlamento tenha que
continuar em sessão, sem o recesso de Natal. Pior do que isso, só quando
o próprio Parlamento proibiu o Natal.
É verdade: no rápido intervalo em que a Inglaterra foi uma república,
com um rei, Charles I, decapitado e tudo, os protestantes puritanos que
dominavam o Paramento sob o comando de Oliver Cromwell proibiram
comemorações, corais, encenações e até comidas típicas, alegando, não
sem alguma razão, que as festividades tinham um elo com o paganismo e
“prazeres carnais e sensuais”.
A proibição foi decretada em 1644 e durou até a restauração da
monarquia, em 1660. A riqueza, a diversidade e até as maluquices
históricas ajudam a dar algum distanciamento quando acontecem crises
aparentemente catastróficas.
A aparente contradição dos momentos conturbados nos países mais
civilizados e ricos do mundo é que não estão relacionados a crises
econômicas profundas.
Os “sans cullotes” de colete amarelo reclamam da vida apertada,
quando sobra mês no fim do salário – 1.700 euros é a renda média do
país, relativamente modesta para o custo de vida alto e a voracidade
fiscal necessária para manter benefícios invejáveis. Nem em seus piores
pesadelos imaginariam o que é ganhar pouco e ter rede social esburacada.
A Grã-Bretanha, com economia mais flexível, estava indo melhor do que
a França na recuperação pós-crise de 2008 quando o Brexit foi votado.
E os Estados Unidos continuam a bombar sob Donald Trump. E, no
entanto, o presidente é que pode ser bombado. Até agora, a acusação mais
sustentável é de violação da prestação de contas de campanha.
Normalmente, é um malfeito punido com multa. Mas nada é normal em
relação a Trump, a começar pela reações de ódio primal que provoca.
E a continuar com o objetivo uso ilegítimo do dinheiro, particular,
mas com destinação eleitoral: dar um cala-boca para uma ex-modelo da
Playboy e uma atriz pornô.
Uma recebeu 150 mil dólares para “vender” a história de seu caso com
Trump ao dono de uma revista de fofocas, uma tática para engavetar a
coisa toda. Outra fez um acordo de confidencialidade de 130 mil dólares.
Não há nada de ilegal nisso – só tinha que ser declarado.
A movimentação não declarada aconteceu durante a campanha. Não se
enquadra, portanto, em algum dos quesitos para a abertura de um processo
de impeachment: os supostos crimes devem ter sido cometidos durante o
exercício da presidência.
Mas Trump terá a partir de janeiro uma Câmara com maioria democrata e
o promotor-especial Robert Mueller ainda não colocou todas as cartas na
mesa –a investigação, só para lembrar, é sobre um possível conluio com
agentes do governo russo para influenciar a eleição presidencial.
Se ele for indiciado, uma hipótese relativamente viável, só poderia
ser processado depois de sair da Casa Branca. Mas só o impacto de ter um
presidente nessas circunstâncias já seria arrasador.
Praticamente toda a elite, e uma parcela da população, sonha com isso dia e noite.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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