Toleramos os de Sentinela mas não os que querem sentinelas nas fronteiras. Coluna de João Pereira Coutinho, publicada pela FSP:
Acompanho com interesse a saga de John Chau. Corrijo. Acompanho com
interesse a saga do corpo de John Chau, o evangelizador de 26 anos que
partiu para uma ilha remota do Oceano Índico com o propósito de
“cristianizar” uma tribo primitiva. Não correu bem. John não terminou no
espeto, como os seus antepassados missionários em outras partes
remotas. Mas também não regressou mais ao mundo dos vivos. Dizem os
pescadores que o levaram até à ilha de Sentinela do Norte, a mais de 1
mil km do continente indiano, que o cadáver foi enterrado na praia.
Provavelmente, depois de uma chuva de flechadas.
Agora, a questão está em saber se o corpo deve ser recuperado e, em
caso afirmativo, como. Não será fácil. A tribo é hostil e a presença de
estrangeiros, com seus vírus e doenças, é hostil para ela. Sempre foi.
Temos um impasse. Lamento, leitor: não sei como resolver o impasse,
embora defenda que o corpo deva ser recuperado. Não o fazer seria uma
triste rendição dos valores mais básicos da sociedade – como dizer? –
“civilizada”. Mas esse não é o ponto.
O ponto é que tenho lido dezenas e dezenas de textos – como dizer? –
“progressistas” que apontam no mesmo sentido: se a tribo não quer ser
perturbada, respeitemos a vontade da tribo. E respeitemos, já agora, a
lei indiana que proíbe essas aproximações.
Começo por dizer que concordo com o argumento. Mas eu, confesso,
nunca fui exemplo para ninguém em minha misantropia libertária. “Não
perturbe” não é apenas a frase mais bela que é possível encontrar em
quartos de hotel (a segunda mais bela é “temos minibar”). É o mandamento
político básico das minhas tábuas sagradas. Talvez seja por isso que
vou colecionando, em várias línguas, esses avisos que penduramos nas
portas. Mas divago.
Ou não divago. Porque as mesmas almas que defendem o respeito
absoluto, dir-se-ia até sagrado, pela vontade de uma tribo em não ser
perturbada por estranhos são precisamente as mesmas que negam esse
direito às “tribos ocidentais” quando o assunto é imigração.
Ponto de ordem, antes de o leitor desmaiar de fúria: as democracias
em que vivemos não são uma tribo; e os fluxos migratórios, para usar a
expressão polida, são legítimos e, em certos casos, até necessários. Mas
é perfeitamente possível afirmar tudo isso e, ao mesmo tempo,
reconhecer e até respeitar as ansiedades de quem não pensa como nós. E
que vê na imigração, sobretudo quando irrestrita, uma ameaça econômica,
cultural e de segurança.
Essa foi a tarefa de David Goodhart em The Road to Somewhere: The
Populist Revolt and the Future of Politics. Apresentações: Goodhart é um
liberal de esquerda, fundador e diretor da revista Prospect. Mas o
autor se tornou persona non grata entre a sua tribo só por argumentar
que a sociedade britânica pode ser dividida em duas classes: os
“anywheres” e os “somewheres”.
Os primeiros representam uma população mais jovem, mais educada,
definitivamente urbana e que se sente à vontade em qualquer canto do
globo que tenha internet e Starbucks, o que obviamente exclui a ilha de
Sentinela do Norte. Os segundos, que constituem a maioria da população,
são mais velhos, menos educados e emocionalmente ligados à sua terra, às
suas tradições – à “nação”, para usar a palavra maldita. Precisamente
porque pertencem a algum lugar, os “somewhere” olham para a globalização
– econômica, mas também demográfica – com menos abertura de espírito.
Para Goodhart, a política britânica do pós-Segunda Guerra sempre
conseguiu um compromisso razoável entre as aspirações dos primeiros e os
receios dos segundos. Pelo menos, até ao dia em que os “anywheres”
tomaram conta do pedaço, ignorando e desprezando metade da população
“somewhere”. Resultado? O Brexit (no Reino Unido) e as revoltas
populistas (na Europa continental ou nos Estados Unidos). Sem um novo
compromisso entre ambos, a democracia liberal terá o mesmo destino do
malogrado John Chau. A sepultura.
E será possível esse compromisso? Mistério. Até ao momento, tudo que
eu vejo é uma tolerância infinita pelos “bons selvagens” da ilha de
Sentinela do Norte e uma intolerância cega pelos “maus selvagens” que
querem sentinelas nas suas fronteiras. Rousseau explica, claro.
É por isso que os maus selvagens podiam imitar os bons e, com um osso
no nariz, passar a usar arco e flecha. Tenho a certeza de que tudo
seria perdoado, desde que não optassem pelo cardápio canibal. O
veganismo da moda a isso obriga.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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