Em artigo publicado no
jornal O Globo, o editor de livros Carlos Andreazza faz justas críticas
aos ministros do STF. De fato, vivemos sob o Estado Fatiado de Direito:
Terão sido dezenas as
vezes em que falei que políticos existem para serem vaiados. Pretendia
dizer que não lhes podíamos dar refresco; que era preciso marcá-los como
Júnior Baiano, aqui e ali os abalroando com uma daquelas tesouras
voadoras pedagógicas.
Meu gracejo
manifestava desprezo pela chamada classe política brasileira — e era
essa mesmo a intenção, a dimensão exibida da piada. Havia outra, porém,
irrefletida: aquela que, à guisa de combater o geddelismo no trato da
coisa pública, acabava por desqualificar também o valor da política —
exercício sem o qual restará o arbítrio.
Nós, brasileiros,
massacramos o Parlamento. Não mais que os próprios parlamentares — é
verdade. Mas fato é que, como consequência, há pelo menos dez anos é o
Supremo que legisla no Brasil, não raro atropelando a Constituição que
deveria guardar.
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O povo na rua estampa
a face de Sérgio Moro. Mas não é a ele que damos musculatura a cada
protesto. É ao Supremo, corte máxima do Poder em que Moro é juiz de
primeira instância.
Ao sair às ruas em
defesa da Lava-Jato e contra o pior dos renans, o brasileiro produz
efeitos imediatos — tanto o direto, que enfraquece o Legislativo e a
ideia de política, quanto o colateral, que fortifica, já para além da
margem do desequilíbrio, o Judiciário.
O brasileiro se veste de Moro; mas anaboliza Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli.
Pergunto se nos
teremos libertado da cleptocracia petista para nos entregar a que nossas
aspirações sejam justiçadas por liminar de Marco Aurélio Mello.
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Torço para que o
Brasil logo se alcance como país em que Renan Calheiros jamais seria
presidente do Congresso. Mas esse avanço não cabe a uma decisão
monocrática de ministro em busca talvez de uma faixa com seu nome na
Avenida Paulista.
Marco Aurélio não
integra o STF para remediar a doença política brasileira. Nada se
esclarecerá num Estado que empodera a babá judicial, tampouco com
canetadas fundadas em vaidade. Não é aceitável, senão num jardim da
infância institucional, que as grandes decisões legislativas brasileiras
sejam tomadas por um colegiado de 11 juízes, muitos dos quais
disputando poder entre si.
Ou alguém duvida de
que a liminar de Marco Aurélio apeando Renan do comando do Senado também
escreveu, na origem, novos capítulos nas brigas internas, por exemplo,
com Gilmar Mendes e Dias Toffoli?
Para tudo se encontra
fundamento jurídico no Brasil; mas deve mesmo o país pagar — com tal
desarranjo institucional — pelas sobras das briguinhas de ego no STF?
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Aí, claro, chega-se
ao grau — grau de anomia — em que o Senado, também voluntarioso,
sente-se à vontade para desafiar uma determinação judicial. É
consequência de quando o personalismo vaza até mesmo as complacentes
fronteiras do estamento burocrático brasileiro.
E, então, o precipício.
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A decisão do plenário
do STF — na última quarta-feira, 7 de dezembro — não versou sobre se um
réu naquele tribunal poderia estar na linha sucessória da Presidência
da República. Mas sobre se Renan Calheiros poderia. Todo o resto
decorreu daí.
Foi uma decisão
fulanizada, que resultou num puxadinho jurídico, que enfraquece Marco
Aurélio tanto quanto robustece ainda mais o Supremo — porque define o
Poder dono da última palavra como capaz de qualquer arranjo.
A aberração recortada
por Renan e Lewandowski quando do impeachment de Dilma Rousseff virou
norma. Aquilo fora o ensaio. Naquela ocasião, contudo, o presidente do
Senado saíra revigorado. Nesta, fatiado em praça pública, teve morte
apenas adiada — e todos concordaram, ele inclusive, que o Supremo é seu
açougueiro.
Vivemos já sob o Estado Fatiado de Direito.
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Falando em açougue,
justiça seja feita. Ninguém tem maior sanha legisladora no STF do que
Roberto Barroso. Se o tema é o aborto, aí o ministro logo se investe da
velha militância. O resultado é o que se viu na sessão de 29 de
novembro, quando a primeira turma daquele tribunal julgou um habeas
corpus em favor de duas pessoas presas preventivamente por prática de
aborto e formação de quadrilha.
Tratava-se, pois, de
caso concreto, sem efeito vinculante — de modo que dos juízes se
esperava a exclusiva análise do mérito da questão. Teria sido assim não
fosse por Barroso, que transtornou aquela deliberação e a rebaixou em
palanque para seu proselitismo neoconstitucional.
Ministro do Supremo
desde 2013, outrora defensor do terrorista Cesare Battisti, Barroso
ainda não se livrou de seus tiques de advogado nem de suas causas
pessoais mais caras. Não fez a passagem. Vestiu a toga, mas não largou a
agenda. Em 2010, advogou a favor da liberação do aborto de anencéfalos.
Agora, membro da Corte, aproveitou o julgamento de um fato de alcance
restrito para, no entanto, avançar em sua pauta, afrontar o Código Penal
e tentar impor legislação conforme seu gosto; no caso, uma que
autorizasse o aborto até o terceiro mês de gravidez.
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Barroso tem todo o
direito de querer legislar. Para tanto, o caminho é conhecido: largar a
toga e se candidatar a uma vaga no Parlamento, lugar adequado a que
represente os grupos de pressão abortistas. Porque não cabe ao Supremo
ser progressista; mas — repito — proteger a Constituição, inclusive sua
porção conservadora.
O Congresso pode ser
hoje um antro, mas é sempre a Casa do Povo — e foi pelo povo brasileiro,
esmagadoramente contra o direito ao aborto, que votou na assembleia que
consagrou a Carta Magna de 1988. Zelemos nós por ela, leitor.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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