Rui Ramos, em interessante artigo publicado no jornal Observador: "A polarização, a demagogia e a irresponsabilidade atribuídas ao "populismo" não são, como agora nos querem fazer crer, exteriores ao atuais sistemas políticos. São parte desses sistemas":
Um livro
vale às vezes por uma frase. É o caso do ensaio de Jan-Werner Muller
sobre o populismo (na edição francesa, Qu’est-ce que le populisme?).
Muller começa com a pergunta certa: “quem é que, afinal, não é
populista?” Exactamente.
É
costume dizer: o populismo não é uma doutrina, mas um estilo. O que o
define? Antes de mais, a noção de que a política consiste no combate que
“nós” travamos contra “eles”. Nós somos a maioria, eles são uma
minoria. Nós temos sido prejudicados, eles têm sido privilegiados. Nós
estamos do lado de fora, eles estão do lado de dentro. Nós somos
virtuosos, eles são corruptos.
Em nome
do “nós”, fala geralmente alguém que os jornalistas, à falta de melhor
vocabulário, chamam “carismático”. O que esse líder carismático se
propõe oferecer é invariavelmente contraditório: por exemplo, mais
despesa social e menos receita fiscal. O resultado é défice, inflação,
às vezes bancarrota. Entretanto, o líder descobrirá as necessárias
conspirações para explicar as dificuldades.
Ora bem,
se isto é o populismo, poderemos dizer que as elites das actuais
democracias ocidentais nunca fazem política assim? Quantos dos políticos
que habitualmente elegemos atacam os “ricos”, ou prometem acabar com a
“corrupção”? Quantos encomendam “carisma” às agências de comunicação?
Quantos prometeram – e até deram – o que não podiam prometer e dar?
Donde é que, de outra maneira, viriam os défices e as dívidas públicas
em tempo de paz?
A
polarização, a demagogia, e a irresponsabilidade atribuídas ao
“populismo” não são, como agora nos querem fazer crer, exteriores ao
actuais sistemas políticos. São parte desses sistemas, são a sua
tentação constante. Dir-me-ão: e o proteccionismo?, e o nacionalismo?
Não são exclusivos dos “populistas”? De facto, a globalização e o
europeísmo foram grandes palavras das elites políticas na década de
1990. Era a moda. Mas já não é. Nos EUA, Hillary Clinton fez campanha
contra os tratados de comércio. Na Europa, não há líder social democrata
que não rosne contra a integração europeia. O sistema só é susceptível
ao populismo, porque já tem os ingredientes do populismo dentro de si.
Mas não
vêm os líderes “populistas” de fora do sistema? As elites instaladas
insistem muito nisso. Recorrem até a uma sociologia imaginária, que faz
do “populista” o representante de um “povo selvagem”, como seriam os
trabalhadores brancos que votaram Trump. Mas Trump já fez parte do
sistema — e muitos esperam que volte a fazer –, e os trabalhadores
brancos que votaram nele, longe de serem racistas à margem da sociedade,
tinham votado em Obama em 2012. No Ocidente, não há, ao contrário do
que se diz, nem duas sociedades, nem duas elites.
Estou
então a dizer que não há motivo para preocupação? Que os bárbaros,
afinal, não vêm, como nos versos de Cavafy? Pelo contrário, estou a
dizer que os perigos são maiores do que podemos imaginar. O maior
problema não é, como nos querem fazer crer, o da “revolta das massas”,
mas o da “conversão das elites”. O chamado “modelo social” já não é
sustentado pela economia. O estilo “populista” é um meio fácil de as
elites políticas escaparem às responsabilidades. Até agora, estiveram
organizadas em turnos de alternância, uns à direita e outros à esquerda.
Não é impossível que, perante as aflições, evoluam para um sistema de
polarização à volta de homens fortes, capazes de apelar transversalmente
ao eleitorado em nome da nação. Foi assim com De Gaulle em França em
1958. Só que nem todos esses homens fortes serão como De Gaulle. Alguns
serão como Viktor Orban é na Hungria, e outros como José Sócrates teria
gostado de ser em Portugal. Os piores bárbaros são aqueles que já estão
entre nós.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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