Artigo de Fernando
Gabeira sobre os últimos acontecimentos na república corroída pelo
patrimonialismo petista e associados. Há, sim, uma luz no fim do túnel:
E se nunca pudermos
sair de 2016? Esta pergunta me impressionou, embora fosse apenas uma
piada. O ano foi tão intenso que parece um longo pesadelo. Talvez tenha
sido intenso para todos, mas aqui no Brasil, com a profunda crise
econômica e um toque de realismo fantástico, 2016 foi mais assustador.
Às vezes penso que toda essa intensidade não se deve apenas ao ano que
termina. Num mundo conectado, muitos de nós consultam a internet de 15
em 15 minutos e ficam desapontados quando não acontece nada.
Nossa demanda por
fatos novos parece ter aumentado. O Brasil tem sido generoso, embora os
fatos sejam quase sempre negativos e não nos levem, necessariamente, a
lugar nenhum. Ferreira Gullar dizia que a vida não basta, daí a
importância da arte. Goethe, por sua vez, dizia que a arte é um esforço
dos vivos para criar um sistema de ilusões que nos protege da realidade
cruel. Dentro de um universo mais amplo, a política também deveria ser
um sistema de ilusões que nos ampara da brutalidade do real. Carmem
Lúcia, de uma certa maneira, expressou isto quando disse ou democracia
ou guerra, referindo-se a uma possível falência do estado, o que nos
jogaria numa batalha de todos contra todos.
Navegamos em águas
tempestuosas. O processo político que era destinado a melhorar nossa
convivência tornou-se, ele mesmo, uma expressão da realidade mais tosca e
brutal. Renan Calheiros foi para a cama com sua amante e até hoje
estamos tentando tirá-lo do cargo, não por suas aventuras amorosas, mas
por um enlace mais perigoso entre empreiteiros e políticos. Ele não cai
por uma paixão proibida, mas sim porque defende o vínculo com os
financiadores das campanhas, riqueza pessoal e até dos seus momentos
românticos. Renan é um general da luta contra a Lava-Jato, embora Lula
reclame esse posto e ninguém lhe dê muita atenção no momento. O papel
histórico de Renan foi coordenar uma reação às investigações, usando
como pretexto a lei de abuso de autoridade. Mesmo se um general cair, e
nada mais sustenta Renan exceto gente correndo da polícia, a batalha
final entre um sistema de corrupção estabelecido e as forças que querem
destruí-lo ainda não chegará ao final.
E é essa batalha, com
a nitidez às vezes perturbada pelas peripécias individuais, que está em
jogo. Na verdade, ela está, nesse momento, apontando para uma vitória
popular. Quando digo vitória, digo apenas tomada de consciência. O
sistema de corrupção que a Lava-Jato enfrenta, com apoio da sociedade, é
muito antigo e poderoso. E essa batalha vai lançar luz na antiguidade e
no poder da corrupção no Brasil. O próprio STF é um órgão do velho
Brasil, organizado burocraticamente para proteger os políticos
envolvidos. Jornalistas que combateram o governo petista agora hesitam
diante da manifestação popular. “Vocês estão fortalecendo o PT”, dizem
eles. Como se a ascensão de um presidente do PT, um partido arrasado nas
urnas, conseguisse deter um projeto de recuperação econômica, já votado
pela maioria. Se 60 senadores que votaram no primeiro turno não se
impõem sobre Jorge Viana é porque são uns bundões ineficazes e não
mereciam estar onde estão. Infelizmente, a coisa é mais complicada.
Usaram de tudo para combater a Lava-Jato. Agora dissociam a luta contra a
corrupção da luta para soerguer a economia. E dizem que uma prejudica a
outra. Coisas do Planalto. Não importa muito se Renan fica alguns dias,
se Jorge Viana vai enfrentar os senadores e a realidade nacional. O que
importa mesmo é o fato de que a sociedade está atenta, acompanha cada
movimento, e não se deixa mais enganar com facilidade.
Um personagem do
realismo fantástico, Roberto Requião, disse que os manifestantes
deveriam comer alfafa. Os que não gostam de ver povo na rua argumentam
sempre com mais cuidado. Requião foi ao ponto, pisando sem a elegância
de um manga larga ou um quarto de milha. As manifestações incomodam.
Revelam uma sociedade atenta, registrando cada detalhe das covardes
traições dos seus representantes. Ela teve força para derrubar uma
presidente. Claro que precisará de uma força maior para derrubar todo o
sistema de corrupção que move a política brasileira. Um sistema muito
forte. Um STF encardido, incapaz de se sintonizar com o Brasil moderno;
um tipo de imprensa que atribui o desemprego e a crise econômica à
Lava-Jato e não aos equívocos e roubalheira do governo deposto; e,
finalmente, os guardiões de direitos humanos dos empreiteiros e
senadores, incapazes de se comover com a vida mesmo e as pessoas que são
esmagadas pelas autoridades.
Está tudo ficando
cristalino e esta é uma das grandes qualidades de crises profundas. Se o
Congresso quiser marchar contra a vontade popular, que marche. Se o
Supremo continuar essa enganação para proteger políticos, que continue.
Importante é a sociedade compreender isto com clareza. E convenhamos: se
quiser tolerar tudo, que tolere. A chance de dar uma virada e construir
instituições democráticas está ao alcance das mãos. Com um décimo da
audácia dos bandidos, as pessoas bem-intencionadas resolvem essa parada.
(O Globo).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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