Com o ferino humor de sempre, Maria João Marques
escarnece - merecidamente - dos órfãos portugueses do "vovô fofinho"
Fidel Castro. O escárnio cabe também às esquerdas daqui, igualmente
chorosas com o tardio passamento do tirano assassino:
Que fartote de
declarações de amor por ditaduras e por ditadores. Mal morreu Fidel
Castro, quase todos os jornais enlouqueceram. Afinal morreu um avô
fofinho que conduziu benevolentemente o seu povo à prosperidade
económica, ao bem-estar social, ao mais livre ambiente onde as mais
ousadas ideias e expressões artísticas floresciam, ao escrupuloso
respeito pelos direitos das mulheres (que, de resto, promoveu
politicamente como ninguém: é ver a quantidade de mulheres políticas
high-profile da Cuba das últimas décadas) e dos homossexuais (os rumores
de prisão para os gays são calúnias imperialistas, claro). Certo?
Pelo que se viu em
jornais alegadamente credíveis, Fidel era impecável. Nos sites do DN e
do Expresso, quem os lesse pensaria que tinha morrido um Gandhi ou outro
apologista da não-violência. O carrasco de Cuba foi descrito como
‘líder carismático’, uma ‘vida histórica’, ‘o eterno revolucionário’,
blablablabla. A ditadura cubana, a repressão castrista, a violência
sobre os opositores políticos, os que fugiam de Cuba como se do inferno,
e os milhares de vítimas, e famílias das vítimas, de Fidel Castro –
esses pareciam invenções de bebedores da água suja do capitalismo: nem
se notaram. O Público teve durante horas online uma manchete de um texto
sobre a vida de Castro (bem expurgado de informações com bolinha, bem
entendido) com o título ‘A morte muito antes do sonho’. E por baixo
afiançava que era o ‘ultimo herói do socialismo ou o último pirata das
Caraíbas, agora tanto faz porque, como todos os idealistas, morreu muito
antes do sonho’. (Perdoem-me o vernáculo: sonho?! Herói?! Apre!)
Bom, tecnicamente em
alguns textos os jornais não mentiram. Se tenho dúvidas quanto ao
carisma (quando se é preso se se duvidar do carisma de um governante,
geralmente age-se como se esse estivesse impregnado do mais carregado
carisma), já não há dúvidas que Fidel Castro foi ‘histórico’. Da mesma
maneira que, ficando pelos exemplos comunistas, o bilhetinho que o
marechal Lin Biao deixou numa das reuniões do Politburo do Partido
Comunista Chinês, certificando que a sua mulher era uma ‘virgem pura’
quando casaram, também foi histórico. Em boa verdade, por se situar no
contínuo do espaço e do tempo, aquela vez em que me cruzei com Donatella
Versace (e os seus numerosos e atraentes guarda-costas) numa sala de
espera do aeroporto de Heathrow também foi histórica.
E de facto Fidel
Castro foi revolucionário. Assim como a tecnologia que permitiu as
bombas atómicas de Hiroshima e Nagasaki foi revolucionária. Mais: como
bem se leu nos jornais, a história julgará o barbudo opressor – mas
esqueceram-se de dizer que o vai condenar. Ou que nada impede
adiantarmos o serviço da sentença nem tomarmos nota de quem elogiou tal
criatura.
As aldrabices sobre Castro aí pelos jornais eram tantas que Henrique Monteiro
teve de escrever a tentar por juízo na cabeça de colegas de profissão
em processo de alucinação. E o Público lá fez por recuperar a dignidade
com um editorial de Diogo Queiroz de Andrade, onde punha os tracinhos
altos nos dd (de ditador), dando uma boa ideia da governação do esbirro
caribenho.
As reações dos
políticos foram igualmente repugnantes. Do PCP veio o gozo descarado
costumeiro. Jorge Sampaio, essa insignificância política de que não
rezaria a história se um dia Cavaco não tivesse perdido umas eleições,
deu um testemunho (e porquê, Deus meu, alguém se lembra de pedir um
testemunho a Jorge Sampaio?) onde aplaudiu a simpatia do hirsuto Castro,
entre outras qualidades adoráveis. Do atual Presidente, que há pouco
tempo se fez fotografar sorridente ao lado do tirano, também nada de
tragável veio.
Mas o pior chegou na
forma dos votos de pesar que o parlamento aprovou pela morte da
criatura. E se do PS extremista se espera todos os enlevos com as
ditaduras comunistas, já não se perdoa que o PSD tenha escolhido
abster-se nesta votação. É por estas e por outras que a suposta direita
parlamentar merece todas as geringonças que a atropelem: os eleitores
não respeitam quem não se dá ao respeito.
Enfim. Para terminar
com uma nota de humor, depois das entranhas revolvidas com as reações
portuguesas à morte de um carrasco das Caraíbas, podemos pelo menos
reconhecer que ninguém por cá foi tão ridículo como Trudeau – deu azo a uma das hashtags mais divertidas
dos últimos tempos –, que produziu um tributo a Fidel Castro que até a
canadiana CBC chamou de ‘deliberadamente obtuso’. Parece que Fidel amava
de amor profundo o povo cubano (matou e prendeu uns tantos, mas o que
interessa isso?) e criou um maravilhoso mundo com boa saúde e educação.
O que é verdade. Quem
não aprecia um destino de turismo sexual com oferta de gente muito
escolarizada a prostituir-se? Também me lembro do filme Guantanamera,
dos idos dos anos 90, onde uma professora universitária e um seu antigo
aluno referiam áreas do saber cubanas, utilíssimas em qualquer curso
superior, da estirpe de ‘marxismo dialético’ ou ‘socialismo aplicado’.
Quem não saliva pela oportunidade de estudar isto?
Em todo o caso, os
meus pêsames à família. Desejo que não se amofinem uns com os outros à
conta das partilhas. Afinal os filhos são muitos e dividir os novecentos milhões de dólares que
a revista Forbes calculou como fortuna pessoal do comunista Castro não
deve ser fácil. Espero que nenhum venha a passar dificuldades nem tenha
de prescindir das férias no seu iate nas ilhas gregas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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