Lamento, e
nem poderia ser diferente, a morte do poeta, dramaturgo, romancista e
professor, entre tantas outras coisas, Ariano Suassuna, de 87 anos. Era
um gigante. Seu corpo será sepultado nesta quinta, às 16h, no cemitério
Morada da Paz, em Paulista, na região de Recife.
Em 1998, a revista Bravo!,
da qual eu era redator-chefe, dedicou-lhe uma matéria de capa. Escrevi o
texto principal, centrado no “Romance da Pedra do Reino”. Ariano me
telefonou numa alegria imensa. Havia em homem tão monumental um quê de
alegria quase infantil pelo reconhecimento daquela que ele também
considerava sua grande obra e que era e é subestimada. Tanto é assim
que, numa entrevista, que está reunida num trabalho acadêmico, afirmou: “(…)
as pessoas geralmente me aceitam como dramaturgo, mas têm um pé atrás
em relação à Pedra do Reino. E, para mim, a Pedra do Reino é minha obra
mais importante. Reinaldo Azevedo, da Revista Bravo, pela primeira vez
disse que em relação à Pedra do Reino havia uma campanha de silêncio, e
há. Há uma má vontade, alguma coisa com o desconhecido, eu não sei (…)”.
Ariano foi durante um bom tempo ensaísta da revista. Era uma honra imensa editar seus artigos.
Em homenagem a Ariano, reproduzo aqui o texto que escrevi para a Bravo!, reunido no meu primeiro livro, “Contra o Consenso” (Editora Barracuda).
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No domingo final deste mês de maio [1998], como em todos os outros, já há seis anos, uma cavalhada no sertão pernambucano consagra o escritor Ariano Suassuna como o inspirador de uma festa popular e celebra alguns dos fundamentos míticos da identidade nacional. Um grupo de cavaleiros paramentados com as alegorias, as armas e as bandeiras de inspiração medieval vai deixar a sede do município de São José do Belmonte (PE), já na divisa com a Paraíba, e andar 30 km até a Pedra do Reino, duas elevações rochosas de trinta e 33 metros de altura, para relembrar, por intermédio da cavalgada sertaneja, os macabros acontecimentos que lavaram as rochas de sangue entre os dias 14 e 18 de maio de 1838, há exatos 150 anos.
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No domingo final deste mês de maio [1998], como em todos os outros, já há seis anos, uma cavalhada no sertão pernambucano consagra o escritor Ariano Suassuna como o inspirador de uma festa popular e celebra alguns dos fundamentos míticos da identidade nacional. Um grupo de cavaleiros paramentados com as alegorias, as armas e as bandeiras de inspiração medieval vai deixar a sede do município de São José do Belmonte (PE), já na divisa com a Paraíba, e andar 30 km até a Pedra do Reino, duas elevações rochosas de trinta e 33 metros de altura, para relembrar, por intermédio da cavalgada sertaneja, os macabros acontecimentos que lavaram as rochas de sangue entre os dias 14 e 18 de maio de 1838, há exatos 150 anos.
Um
movimento messiânico, autoproclamado sebastianista, conduziu à morte
pelo menos 83 pessoas — trinta delas crianças — em quatro jornadas
cruentas. Nas três primeiras, os líderes exortaram os fiéis ao suicídio e
ao infanticídio por suposta ordem de d. Sebastião — o rei português
desaparecido aos 24 anos na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578 —, que,
em paga, não só lhes devolveria a vida como ali desencantaria para
instaurar um reino da justiça e da liberdade. Na quarta jornada,
fazendeiros e a polícia comandaram uma expedição contra os fanáticos,
que resultou na morte de trinta fiéis. É essa a expedição recontada pela
cavalhada.
O que deu
asas à imaginação do líder do tal movimento, João Antônio dos Santos,
foram versos de um folheto de cordel sobre a volta de d. Sebastião. Daí
por diante, tudo indica, ele e um cunhado, João Ferreira, usaram toda
sorte de pilantragem para extorquir dinheiro dos fazendeiros e juntar
uma massa de fanáticos que passaram a incomodar os poderosos e a própria
Igreja Católica. Euclydes da Cunha, na parte O Homem, de Os Sertões,
assim fala da Pedra do Reino: “O transviado encontrara meio propício ao
contágio de sua insânia. Em torno da ara monstruosa, comprimiram-se as
mães erguendo os filhos pequeninos e lutavam, procurando-lhes a primazia
no sacrifício… O sangue espadanava sobre a rocha jorrando,
acumulando-se em torno (…)”. José Lins do Rêgo também explorou o
massacre em Pedra Bonita.
Mas foi
com o paraibano Ariano Suassuna que aqueles episódios sangrentos
serviram de pretexto para uma obra-prima, o seu Romance d’A Pedra do
Reino. O livro — um catatau de 623 páginas editado em 1971 pela editora
José Olympio — deu origem à festa popular. Tal sucessão é inédita na
história do país: a realidade copiou o folhetim popular, pagou seu
tributo sangrento em história, voltou à letra impressa pela pena de
Ariano e, de novo, ganhou curso entre os homens do povo. É a síntese
viva do Movimento Armorial criado pelo autor na década de 1970.
Substantivo
em português, adjetivo na releitura de Ariano, o termo armorial designa
o conjunto de bandeiras, insígnias e brasões de um povo. Ariano diz à
Bravo!, em entrevista a Bruno Tolentino, que a heráldica, no Brasil, é,
antes de tudo, popular. É o homem do que ele chama “quarto estado” que
tem paixão por esses signos, expressa, por exemplo, nas bandeiras de
futebol. Daí a escolha do nome “armorial” para um movimento que busca
“as raízes populares da cultura brasileira para chegar a uma arte
erudita”.
Mas aqui
começam os problemas. Das suas origens — filho de latifundiário — às
pelejas intelectuais ao longo da vida, o autor, que jamais viajou ao
exterior, tem sido vítima de uma espécie de patrulha cosmopolita, que se
manifesta pelo silêncio. Se seu teatro mereceu a acolhida da crítica,
sua prosa foi e tem sido estupidamente ignorada. Esgotado há mais de 20
anos, A Pedra do Reino é um monumento da literatura moderna de expressão
portuguesa dificilmente igualável por qualquer critério que se queira e
faz de Ariano o maior prosador brasileiro vivo. Mas o que tanto
incomoda a tal vigília nada cívica?
Ariano é
um autor que bebe cristalinamente nas fontes da literatura ibérica e do
catolicismo medievais. Para entender o seu teatro, por exemplo, é
preciso penetrar no universo picaresco e no catolicismo popular em que o
Bem e o Mal (Calderón de la Barca, Gil Vicente, Padre Anchieta)
disputam a alma humana e lhe ditam nortes éticos distintos. Estamos no
mundo da queda e da redenção. A queda se revela em linguagem farsesca,
conivente com o público em sua malandragem. À redenção expressa o
fundamento da remissão dos pecados, geralmente pela intervenção divina.
As personagens de Ariano, no entanto, não são as mesmas da pequena
burguesia ordinária da Trilogia da Barca do Inferno, de Gil Vicente, por
exemplo. Seu universo é o do homem do Nordeste, da cultura sertaneja. A
forma de seus autos se deixa influenciar pelo teatro de bonecos, pelo
mamulengo.
Há nesse
arranjo tudo de intenção. Ariano faz escolhas, patentes também em sua
prosa. É ele quem diz: “Toda cultura universal é primeiramente local.
Dom Quixote, de Cervantes, expressa a realidade de Castela. Shakespeare é
elisabetano. Quando leio Dostoiévski, encontro ali os dramas do homem
segundo o ponto de vista e a cultura da Rússia. Eu, então, me baseio na
cultura popular brasileira para fazer meu teatro, meus romances, minha
poesia”. Ocorre que Ariano escreve sobre o Brasil em língua de origem
inequivocamente portuguesa sem jamais flertar com qualquer vanguarda
ideológica ou formalista que lhe desculpe essa herança. Não se vê nele
nem mesmo um herdeiro da Geração de 30, como às vezes se quer.
Não se lê
em Ariano a preocupação de ideologizar o romance nordestino ou, mais
amplamente, a prosa ou a cultura nordestinas, no mesmo tom de denúncia
ou de recaída naturalista que marcaram a geração de escritores do
Nordeste emigrados para o Rio. Ele também não flertou com realismos
socialistas ou morenices sensualistas. E, nem por isso, falou de um
ponto de vista menos compromissado. E é em seus compromissos que estão
sua grandeza e seu assumido limite. N’A Pedra do Reino, já observou o
crítico Wilson Martins no ensaio “Romance Picaresco?” [in Pontos de
Vista, vol. 9, T. A. Queiroz Editor, pp. 175-80], Ariano não optou pela
farsa ou pelo picaresco em busca do norte moral. O texto costura os
traços fundadores da cultura brasileira e em seu percurso confronta
teorias diversas sobre a terra e a gente do Brasil.
Ao voltar
aos episódios cruentos da Pedra Bonita (nome original do lugar),
Quaderna — o personagem-narrador que pretende, cem anos depois, usar os
acontecimentos ali havidos para fazer a grande epopéia nacionalista
brasileira — não é outro senão o próprio Ariano. As personalidades com
as quais convive estão divididas entre as correntes de pensamento que
ditaram as vogas ideológicas na década de 1930: integralistas,
comunistas e intelectuais de formação européia. Em suas páginas se
debatem temas como a função da arte, o confronto entre o Estado e o
indivíduo e entre os valores éticos e os estéticos. Num texto que
prefere o universo rural ao urbano, a cultura regional a supostos temas
universais, o alter ego de Ariano transita entre Sílvio Romero e Joaquim
Nabuco e vai compondo um imenso e fecundo painel da cultura brasileira.
Em prosa, talvez a mesma tentativa, mas com divisas assumidamente
ideológicas e urbanas e numa dimensão reduzida, tenha sido feita por
Paulo Francis em Cabeça de Negro. Nos dois casos, estamos diante de
romances de idéias.
E elas
mudam. Embora considere a sua principal obra, Ariano afirma a Bravo! que
submeteria A Pedra do Reino a mudanças: “Eu gostaria de acrescentar um
pouco do urbano. O livro também seria mais curto, como está sendo
editado agora em Paris. Eu praticamente o refiz”. Ele se refere à versão
francesa — La Pierre du Royaume —, assinada por Ydelette Muzart,
publicada em março pela editora Métailé. A capa traz um subtítulo
provocativo: “Versão para europeus e brasileiros de bom senso”.
Quem refaz
também renega. Ariano rejeita hoje a continuação d’A Pedra: História
d’O Rei Degolado, publicada em 1977, o segundo volume da prevista
trilogia que se completaria com Sinésio, O Alumioso. E explica a razão:
“O elemento pessoal entrou com uma força que eu não desejava”. O autor
se refere aos episódios que antecederam a Revolução de 30, que
resultaram nos assassinatos de seu pai, João Suassuna, e de João Pessoa,
então presidente do Estado da Paraíba, transfigurados e transportados
para o texto.
Ariano
conta que cresceu lendo nos jornais e nos livros de história que seu
pai, representante das forças rurais, era o mal, e que João Pessoa, seu
adversário, era o bem. Fez o que um filho de bem pode fazer diante do
corpo tombado do pai: tomou o seu partido. Diz um de seus sonetos: “Aqui
reinava um rei, quando eu menino/ Vestia ouro e castanho no gibão (…)
Mas mataram meu pai. Desde esse dia/ Eu vivo como um cego, sem meu
Guia,/ Que se foi para o Sol, transfigurado./ Sua efígie me queima. Eu
sou a presa,/ Ele a Brasa que impele ao Fogo, acesa,/ Espada de ouro em
Pasto ensanguentado”. O mesmo compromisso que o fez refletir em sua obra
a sua própria história também o levou a uma espécie de retiro
literário. Já “passando da idade madura para a velhice”, o escritor diz
ter entendido que os episódios de 30 estavam longe de refletir a luta do
bem contra o mal, mas “o confronto entre privilegiados do campo e os
privilegiados da cidade”.
Ariano não
é, evidentemente, o primeiro autor brasileiro a incorporar a cultura
popular à narrativa com um sentido de estudo. Antes dele, Mário de
Andrade fez de Macunaíma uma espécie de síntese dos falares brasileiros.
Mas há uma diferença: quando Mário não é apenas o turista descritivo ou
o compilador dos cocos, sua visão de Brasil é pessimista. Comparem-se
Macunaíma e o João Grilo de O Auto da Compadecida. O primeiro merece o
epíteto de anti-herói; o segundo, não. Grilo é um herói de fato, é, como
diz Ariano, o quarto estado vencendo a burguesia, o clero e a nobreza.
Macunaíma é a melancolia tropical. Que o Mário de Macunaíma seja
considerado um gênio em certos círculos acadêmicos, e Ariano, ignorado é
compreensível: afinal, o primeiro representa os nossos mais acalentados
sonhos de derrota, e o segundo aponta para um futuro possível, para um
sonho de vitória.
Com
frequência, a inteligência brasileira está preparada para perder, jamais
para ganhar (FHC chama a isso de fracassomania…). A alegria é uma
espécie de exotismo reservado aos Joões Grilos do povo, que se deve
experimentar com o distanciamento crítico de um antropólogo. Ademais,
Ariano não aproveitou os seus estudos para alimentar discursos
antropófagos de fácil deglutição, não juntou Carmen Miranda e coca-cola
para vencer o complexo de autor subdesenvolvido situado na cloaca do
mundo. Até porque sempre falou das alturas.
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