Deus está morto, disse Nietzsche, é certo, mas quem certificou o corpo? Onde está a autópsia? Não continua o mundo tão misterioso como antes? Não persiste a Coisa em Si Mesma tão incognoscível quanto Kant a imaginou? Nuno Lebreiro para o Observador:
Um
dos primeiros homicídios, conta-nos Hesíodo, foi o de Urano, a
personificação do céu, às mãos de Cronos, seu filho. A arma do crime,
uma foice gigante, de pedra, criada por Gaia — mãe, mulher e instigadora
moral do crime — foi usada com destreza pelo deus do tempo e das
colheitas contra seu pai, numa emboscada. Saltando de um esconderijo, o
ataque principiou contra os genitais do pai que, desprevenido, se
preparava para, mais uma vez, fecundar a mãe sob o frio, escuro e longo
manto da noite. Nem tudo se perdeu, no entanto. Do sangue vertido pelo
parricídio vieram ainda ao mundo diversos deuses que continuaram a
criação, sendo que, de todos eles, nenhuma divindade seria tão bela
quanto Afrodite logo ali também parida pela espuma branca que os
genitais de Urano, castrados e largados pelo filho, deixaram para trás
enquanto se dissolviam nas águas crispadas e revoltosas do mar Egeu — o
ideal de amor celestial, bem acolitado por Eros e pelo desejo, afinal
nascia dos arrancados genitais de Urano, tal como consequência directa
do acto de homicídio de Cronos.
Do
outro lado, na Suméria, o filho não matou o pai, mas sim a mãe. Tiamat,
o dragão criador do Universo que, a mando de Apsu, seu consorte, acedeu
à tentação entrópica de destruir a própria descendência devido ao
incómodo que a cacofonia desafinada dos jovens deuses causava a seu pai.
Mal-sucedidos os planos, logo ali enviuvada e acossada pela vingança da
descendência, Tiamat reage soltando a fúria celestial contra as
próprias crias, as quais se empenhou em engolir. Resistiu-lhe Marduk,
seu filho mais novo, mas que pela bravura do matricídio que cometeria
sem remorso viria a ascender ao estatuto de deus supremo. Marduk, armado
de uma grande espada, esventra a mãe, rebenta as águas primordiais do
ouroborus materno e, daquelas entranhas, desenha a nova criação, fixando
estrelas, mares, rios e impondo a necessária ordem divina ao caos
primordial criado pela folia do útero materno rebentado.
Muito
mais tarde, Deus-Todo-Poderoso — Aquele que criara o mundo em sete dias
— enviou Seu Filho à Terra para revelar o caminho aos homens que,
entretanto, haviam tomado conta do mundo. Mas a oferta divina não colheu
o melhor fruto que se poderia imaginar. Irados, os humanos reunidos em
revoltada multidão, perante a escolha entre salvar Cristo, Filho de
Deus, ou um comum criminoso de seu nome Barrabás, levados pela
propaganda de dois ou três mestres da arte da manipulação de massas,
optaram estridente e orgulhosamente pelo segundo. Quanto ao filho de
Deus, Esse, foi coroado com espinhos, chicoteado, torturado,
crucificado, esfaqueado, sangrado e sepultado perante o escárnio e o
ressentimento da populaça. Desde aí, paradoxalmente, a Cruz foi colocada
ao centro de cada uma das nossas cidades para nos lembrarmos o quão
árduo e extenuante é o caminho da redenção — tal como o quão excruciante
pode ser também o arrependimento.
Mas
qual a novidade de tamanha injustiça, do sangue e da violência se até
na filosofia que tanto inspirou o nosso nascimento civilizacional, arte
normalmente associada à serena reflexão e à calmaria própria da
introspecção meditativa, o homicídio brutal e iníquo encontrou o seu
natural lugar, tanto fundador como central? Afinal, o destino do homem
unanimemente considerado como tendo sido o mais virtuoso e sábio de
todos os filósofos — Sócrates — foi o mesmíssimo do Filho de Deus quando
descido ao mundo: julgado, condenado e, ainda que também como Cristo
aceitando o seu Fado, assassinado. O crime? O de corromper os valores
dos jovens de Atenas através da exortação à reflexão e à dialéctica. Ou
seja, tanto na filosofia como na teologia reside um mesmo crime, uma
mesma culpa, sobre a qual se ergue o edifício moral ocidental: o da
condenação à morte de um inocente, um inocente que reúne em si mesmo o
conjunto máximo de virtudes desejáveis, como também o exemplo de um
caminho a ser seguido — caminho o qual termina, num caso, na Cruz e, no
outro, no fundo de um copo de cicuta.
Ainda
do mesmo modo violento, repare-se, Cronos, apesar de esquecido, nunca
deixou verdadeiramente de comandar o mundo. Assim, ainda hoje, como
sempre, inexoravelmente, o tempo passa, levando com ele todos aqueles
que um dia viveram, bem como os seus anseios e desejos, medos e paixões,
terrores e ansiedades. Verdade seja dita, desde os gigantes da
Antiguidade, ainda antes da Idade Dourada, até àqueles que hoje por aqui
ainda andam, comem, fornicam e se reproduzem, todos, sem excepção,
cumprem a divina profecia — “tu és pó e ao pó retornarás”. A suprema
igualdade talvez seja, então, esta: a de que também isto, seja o “isto”
motivo de grande felicidade, ansiedade ou miséria, passará.
A
profecia, naturalmente, impele à angústia, à imaginação, e daqui ao
escapismo e ao misticismo. Num mundo misterioso, sem aparente causa,
ignorantes da sua finalidade, os homens contentam-se com uma ridícula e
implacável certeza: a de que vivem e morrem em mistério, ignorância e
irrelevância. Poderia ser pior, convenhamos. Poderia dar-se o caso de a
descoberta da verdade revelar uma realidade ainda mais angustiante. Por
exemplo, talvez fosse mais triste reconhecermos que tudo o que somos,
nós e todos os outros, não passasse afinal de um melancólico divagar,
estertor final de um velho louco perdido no mar. Todos um, mas um só,
numa unidade primordial que explicaria aquele vazio que ecoa e
aterroriza os corações de tantos seres humanos — a solidão.
Confortemo-nos, pois, diria a Prudência, com o desconhecimento, não vá
ser ele, afinal, uma benesse dos deuses.
Curiosamente,
o caminho moderno para alívio face à terrível profecia que a todos nos
condena à morte passa por uma radical recusa da violência do mundo — o
que implica negar toda a narrativa mitológica e moral que nos fez
enquanto civilização. O Homem moderno nega o divino, esquece o mundo
antigo consumido nas agruras dos deuses e aposta na matéria como
superação do seu predicamento existencial — a tecnologia o salvará! Essa
aposta no mundo material, bem como a recusa da nossa herança mitológica
que necessariamente a sucede, tiveram um custo, também ele um violento
crime — mas do qual pouco se fala. Nietzsche, pela boca de um velho com
um candeeiro perdido num mercado, denunciou-o bem alto e não se coibiu
de apontar o dedo ao autor: Kant, o filósofo que, em Konigsberg, sempre
passando à hora justa defronte da Igreja, matou Deus com a sua asserção
de que poderiam os homens saber o que é moralmente certo sem terem que a
Ele recorrer — bastar-lhes-ia a razão. Deste crime, o mais violento
desde que Cronos castrou seu pai, não fala a mitologia moderna — talvez
por vergonha, apenas o dá como feito, natural e acabado.
Nega-se,
pois, Deus. Não apenas Deus mas, atente-se, todos os deuses. Ou seja,
Deus não existe, Cristo é uma fábula, Marduk e Cronos efabulações de um
mundo animal, grotescamente violento, já distante, coisas de gente pouco
evoluída, inconsciente e não-moderna. Mas as manchas do sangue do
assassinato divino não desaparecem por magia, nem por decreto
governamental: matar Deus implicou matar o ideal de virtude, a perfeição
que se visava atingir, bem como a fonte de tudo o que um dia imaginámos
como Bom, Belo e Sublime — logo o verdadeiro combustível da História.
Não é coisa pouca, assuma-se.
No
entanto, do outro lado do crime, apesar da solidão existencial que a
culpa pelo assassinato divino nos deixa no íntimo do inconsciente
colectivo, uma outra pergunta emerge: de que serve negar a existência do
deus Cronos — matá-lo — se o tempo aí continua a tudo reger, tudo
limitar, tudo comandar? Bastará aos modernos para matar Cronos definir o
tempo como uma dimensão universal do contínuo espaço-temporal? Ou não
será isso, ao invés de matar o deus, apenas mudar-lhe o nome para uma
crença nova, um linguarejar que adapta conceitos e termos, mas que, na
realidade, nada muda porque limita-se a descrever um mundo que, para
todos os efeitos, quer queiramos quer não, nos transcende? E se não
conseguimos matar Cronos que dizer da asserção de que matámos
Deus-Todo-Poderoso-e-Omnipotente, Criador do Universo?
Deus
está morto, disse Nietzsche, é certo, mas quem certificou o corpo? Onde
está a autópsia? Não continua o mundo tão misterioso como antes? Não
persiste a Coisa em Si Mesma tão incognoscível quanto Kant a imaginou? O
Destino, não está ele ainda escondido por trás do pesado manto que
Cronos insiste em não levantar diante dos nossos olhos? Depois, são
modernos, dizem-se dando palmadas nas costas uns dos outros, mas não
cedem eles sob o efeito dos deuses? Não dançamos todos noite fora com
Dionísio e Baco? Não movemos o mundo, matando e fecundando, por Eros e
Afrodite? Não somos acometidos pelo susto aterrador de Fobos? Não
continuam eles todos aí — deuses e demónios — em remoinhos de
pensamentos, novelos de sentimentos e estranhas e obscuras vontades que
nos elevam ou rebaixam, alegram ou entristecem, preenchem ou destroem?
Que vale se atribuímos hoje uma alucinação a uma doença mental ao invés
de um vislumbre do mundo shamânico? Que interessa o nome que damos ao
que não controlamos se, no final, o mundo permanece como sempre foi —
inóspito e irreconhecível?
O
homem moderno, herdeiro das luzes e da Revolução, crê-se racional,
independente, capaz de separar-se face a um mundo animal que,
transcendendo-o, lhe permite superar a sua própria condição — mortal,
efémera, condenada. Hoje, o Homem tanto paira sobre o mundo que a sua
preocupação é não deixar pegadas — ambientais, de carbono ou metano,
consoante a actividade. No conforto de uns quantos metros quadrados de
cimento, empilhados em altura, ligados à corrente em bolhas de ar
condicionado, os homens modernos habituam-se ao conforto da escada
rolante, do elevador e do automóvel. Voam como pássaros, comunicam à
distância à velocidade da luz circulada vertiginosamente em cabos de
fibra óptica; e daí, desse carrossel ultra-protegido, imagina o homem
moderno um mundo e um Universo regido pelas mesmas regras e, claro está,
pelas mesmas mãos — as do Homem, pois claro.
Na
realidade, apenas sonham os modernos que se arrogam de ter morto todo o
divino com assumir eles próprios esse lugar — no novo Olimpo, criado
agora no mundo material, rumo a uma nova dimensão ciber-espacial que,
esculpida de cilício, alumínio, cobre e tungsténio, movida a energia
renovável, verde, infinita, abundante, garantirá de forma automática a
imortalidade, agora não das almas, mas das memórias e dos pensamentos.
De facto, tal como aos antigos as imagens do Paraíso ou de Valhalla
alimentavam a coragem para enfrentar o mundo, também agora aos modernos
lhes ilumina o sentimento a crença no futuro paraíso — apenas que a este
não se acede sendo virtuoso, passando o exame finíssimo do Purgatório
ou da pesagem das almas, mas, porque ainda no mundo material do aqui e
agora, estará o novo paraíso à simples distância de um clique e de uma
conveniente subscrição mensal: 999,99$ em doze prestações anuais, nem no
tempo das indulgências foi tão barato e tranquilo o sonho da
imortalidade, convenhamos.
Há
um outro custo que pesa mais, no entanto: na tentativa de alçar-se ao
Olimpo, decidiu o homem moderno tornar-se personagem na narrativa
mitológica, matando Deus para tomar-lhe o lugar; mas, na ânsia de
superar a sua própria condenação à morte, sonhando com o paraíso imortal
já aqui e agora no mundo material, amputou-se o Homem da sua parte
imaterial, ou espiritual, aquela que era imortal, reduzindo-se agora
apenas ao tal pó que o faz — e que o mata. Esta redução, uma amputação,
repito, de tudo aquilo que um dia imaginámos importante na vida, tem, de
facto, os seus custos — desde logo esta incessante insatisfação que o
consumidor moderno, por mais que consuma, não consegue satisfazer.
De
caminho, junto com o assassinato divino, tentou o homem moderno fazer
sumir as provas do crime: os mitos, as histórias, as fábulas, tudo
ridicularizando, tudo desprezando, tudo reduzindo ao materialismo
estéril das pedras, sempre sem compreender que esses mitos, essas
histórias e essas fábulas encerram dentro de si mesmas a História do
Mundo e do Homem, das suas forças e das suas fraquezas e que, como um
espelho, reflectem o que fomos, somos e seremos.
Hoje,
em nome da Revolução, do Progresso e da Igualdade — os novos deuses —,
apregoando inconscientemente a ascensão ao trono supremo do mundo da
deusa Tecnologia — aquela que imaginamos que nos salvará —, até as
estátuas dos homens e mulheres que nos fizeram se pretendem deitar
abaixo para não ferir susceptibilidades modernas. Como se a vida fosse
outra coisa além de ferir susceptibilidades — ou se as susceptibilidades
dos loucos e dos idiotas interessassem para o que quer que seja.
Seguindo
este triste caminho, a seu tempo, em nome da insana pretensão de
ascender ao Olimpo, tudo o que um dia fez de nós homens será destruído.
Aí, rodeado de destroços, nu, derrotado como sempre, só e abandonado,
reconhecendo a sua verdadeira condição, enganado pelas suas próprias
ilusões e tentações, o Homem, como Sísifo, recomeçará a sua missão —
seja ela qual for. E da loucura destes dias de hoje não sobrará mais do
que as lendas e os mitos que, contando a nossa história, os homens de
então cantarão aos seus filhos — para que aprendam com os nossos erros e
não repitam a nossa loucura.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário