Quando uma potência nuclear invade um vizinho e reclama o direito de o conquistar não existem boas opções. Bruno Cardoso Reis para o Observador:
Chegou
oficialmente o outono, e o inverno está a caminho. O início desta
altura mais tempestuosa do ano coincidiu com um discurso de Vladimir
Putin a anunciar a mobilização parcial e a exibir novamente – pelo menos
quatro vezes – o seu arsenal nuclear. Não irei cometer o erro dos
defensores de Putin, que em Fevereiro nos garantiam que uma invasão era
irracional e, portanto, impossível. Putin tem assumido muito opções
pouco racionais do ponto de vista dos verdadeiros interesses da Rússia.
Depois de 22 anos no poder, parece confundir os seus interesses com os
interesses do país. Por isso, nunca me passaria pela cabeça garantir que
seja impossível uma escalada perigosa, inclusive com o recurso a armas
nucleares, se o senhor do Kremlin sentir a sua sobrevivência ameaçada.
Que conclusões podemos tirar de tudo isto?
Putin não podia esperar
Putin
não podia esperar pelo inverno, apesar de estar a chegar. Não podia
esperar pelas maiores dificuldades em levar a cabo grandes operações
ofensivas que historicamente surgem a partir das chuvas de outono nesta
zona do mundo. O clima está a mudar e os ucranianos estão a avançar
muito depressa. As tropas de Kiev recuperaram em poucos dias milhares de
quilómetros quadrados que as tropas russas tinham demorado meses a
ocupar. Este outono pode ser menos chuvoso e o inverno menos frio. A
chantagem nuclear e a mobilização parcial russas dizem-nos muito do grau
de desconfiança de Putin quanto à eficácia e vontade de combater das
suas tropas. Prova disso é o facto de o parlamento russo estar a debater
uma lei para agravar as penas por deserção e recusa de combater.
Putin
também não podia esperar por controlar todo o território do Donbas e da
dita Nova Rússia para organizar pseudo-referendos. Este será,
aparentemente, o primeiro referendo da história a ser anunciado e
organizado em menos de uma semana. Ninguém de boa fé lhe dará qualquer
valor como expressão da vontade popular. Porquê tentar fazê-lo? Putin
precisava urgentemente de dar aos colaboracionistas e separatistas um
sinal de que não os irá abandonar, perante notícias de que alguns
começavam a debandar para a Rússia. Fica ainda a suspeita – apesar de
vagos desmentidos – de que tal tornará possível obrigar legalmente os
jovens russos que estão a fazer o serviço militar obrigatório a combater
na Ucrânia.
Este
passo também significa que a Rússia não poderá negociar territórios que
se dispõe a anexar. É essa a paz que queremos? Queremos reconhecer à
Rússia um direito de conquista mal embrulhado numa fantasia
pseudodemocrática? Putin aparentemente também não podia esperar pela
combinação da chegada do inverno e da sua guerra energética para tentar
dividir o Ocidente e minar a sua vontade de ajudar a Ucrânia. Iremos
fazer-lhe a vontade?
O que deve o Ocidente fazer?
O
Ocidente está em desvantagem perante a Rússia desde o início desta
invasão. Isso não se deve a qualquer génio estratégico de Putin ou à
grande capacidade das Forças Armadas russas. Deve-se ao facto de o
Kremlin não ter problemas em violar o pilar da ordem legal
internacional, que, desde 1945, determina o fim das guerras de conquista
e anexação. Putin até parece disposto a ameaçar com uma hecatombe
nuclear população que ele afirma ser russa! Já os países ocidentais
deixaram claro, desde o início, que para evitar uma escalada perigosa
iriam limitar o seu apoio à Ucrânia, nomeadamente, não iriam enviar
tropas ou fornecer certo tipo de armamento.
Ao
mesmo tempo, o Ocidente tinha de fazer pagar um preço elevado à Rússia
pela sua invasão e projeto de anexação. O contrário seria abrir o
caminho ao regresso do direito de conquista como algo normal, resultando
num mundo mais violento e mais perigoso, em particular, para países da
dimensão de Portugal. Mas, na medida em que esta estratégia de guerra
económica contra o regime russo e de apoio militar indireto à Ucrânia
fosse bem-sucedido, como está a ser, abalando a aura de homem forte de
Putin, este poderia, para evitar uma derrota humilhante, apostar numa
escalada perigosa.
O
que fazer? Devemos deixar a Ucrânia correr o risco de uma escalada que
pode chegar ao nível nuclear? Cabe fundamentalmente aos ucranianos
decidir até onde querem ir na guerra e nas negociações de paz. São eles
que todos os dias correm risco de vida para resistir à invasão russa.
São eles que correrão o maior risco perante uma escalada. É fundamental
que a grande coligação que apoia a Ucrânia deixe claro que não será ela a
promover uma escalada, mas também não se deixará intimidar e não
abandonará os ucranianos. Deve também sinalizar que irá rever os termos e
o tipo de apoio à Ucrânia em função do nível de ameaça russa.
Quando
uma potência nuclear invade um vizinho e reclama o direito de o
conquistar não existem boas opções. Não são necessários autoproclamados
pacifistas para nos dizerem que os riscos são elevados e que a paz é
desejável. Não é aceitável é que procurem esconder que esta é a guerra
de Putin. Não é aceitável defenderem uma paz a qualquer preço, que seria
a receita para um mundo menos livre, menos seguro, menos pacífico.
É
evidente que o Ocidente cometeu erros no seu passado, mas nenhum deles
pode legitimar a invasão russa no presente. O mais relevante desses
erros para esta crise terá sido a enorme pressão dos EUA sobre a Ucrânia
para abdicar do seu arsenal nuclear, como resultado do desejo louvável
de combater a proliferação, bem como da vontade de acomodar as
preocupações da Rússia. Em 1996, a Ucrânia entregou à Rússia as últimas
de milhares das suas ogivas nucleares em troca de garantias da sua
segurança e integridade territorial. Esse arsenal nuclear tem feito
muito falta à Ucrânia para dissuadir a agressão russa. Perante tudo
isto, o mínimo que o Ocidente pode fazer é continuar a apoiar a Ucrânia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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