O voto do cidadão em pouco difere daquilo que nas relações privadas apelidamos de contrato de adesão, onde a liberdade do cidadão se limita a dizer “sim” ou “não” à totalidade de um programa político. Rodrigo Adão da Fonseca para o Observador:
Por
estes dias, o mundo assiste com respeito e até espanto, às cerimónias
fúnebres da Rainha Isabel II. Como monarca, ela chefiou não apenas o
Reino Unido, mas, ao longo do seu reinado, 32 Estados independentes, 14
dos quais à data da sua morte. Liderou ainda a Commonwealth, uma
comunidade de 53 países de inspiração britânica, a Casa Real de Windsor,
a Igreja de Inglaterra, e as Forças Armadas do Reino Unido. O seu
reinado, sem nunca ter sido eleita, por direito recebido de forma
hereditária, durou 70 anos. De todo o mundo surgem manifestações de
apreço pelo seu papel e peso na História – as mais impressionantes do
próprio Reino Unido, onde pessoas de todas as idades, origens sociais e
crenças esperaram horas a fio (em alguns casos, mais de 24 horas), para
poderem velar por breves instantes o seu corpo em câmara ardente –, mas
também críticas, sobretudo dirigidas, não tanto à pessoa da rainha
Isabel II, mas da instituição que representa – a Monarquia – por ela não
ser “democrática”.
A
Monarquia não é seguramente “democrática”, mas não deixa de ser
compatível com o que consideramos hoje ser um Estado de Direito moderno,
como é o caso do Reino Unido, convivendo bem com outras instituições,
elas próprias, democráticas. Até porque, não sendo fã de inerências
monárquicas não posso também esquecer – e aqui recordo – que a palavra
“democracia”, sendo usada com frequência como um lugar-comum, abarca
toda uma série de conceitos que a transcendem. À democracia são
imputadas com frequências funções (e virtudes) que correspondem ao
exercício da liberdade ou à normal tutela daquilo que é um Estado de
Direito, estando hoje profundamente em crise.
Não
é de agora, a confusão vem de longe, e não é inocente: há forças
políticas, normalmente de esquerda, que tentam imputar à democracia a
ideia de que ela só se realiza quando prossegue um determinado programa
político específico. Para este núcleo de pessoas, a democracia só se
concretiza na eleição daqueles que perseguem e defendem certas e
determinadas políticas, devendo haver “resistência” quando a vontade
popular se encaminha para outro tipo de escolhas, as quais, sendo
expressão do voto ou do sentir popular, passarão a “não ser
democráticas”. Neste quadro de pensamento, democracia e liberdade são
habitualmente apresentadas como faces de uma mesma moeda. E se me parece
consensual que sem democracia não existe liberdade, há muito que
defendo que no jogo de forças entre ambos os conceitos o papel da
democracia tem sido excessivamente valorizado. A democracia em si não
tem o valor social que por vezes muitos lhe atribuem: ela é apenas uma
forma de governo das sociedades, que se impôs pelos seus méritos na
generalidade dos países desenvolvidos, mas assiste apenas na afirmação
da soberania popular como princípio fundamental, não sendo, contudo,
condição suficiente para a realização da pessoa na comunidade: tal só
ocorre quando se defendem as liberdades.
A
democracia é condição necessária, é o sistema de governo que permite
que a globalidade dos cidadãos possam escolher os seus governantes. A
democracia serve para organizar um poder que emana da generalidade dos
cidadãos. Na verdade, e na impossibilidade de existir uma tutela direta
exercida pelos cidadãos sobre todos os elementos da gestão comunitária,
torna-se necessário definir um processo de escolha dos que, sob mandato,
vão gerir a esfera pública. A democracia diz, portanto, respeito à
questão quem governa. E pressupõe que a escolha reside em cada um dos
cidadãos. Tem, assim, uma justificação funcional, sendo esse o seu valor
social.
Valor
esse que está profundamente depauperado em várias democracias
ocidentais. Com o crescimento exponencial do Estado, grande parte das
relações sociais passaram a ser arbitradas e mediadas por canais
democráticos, criando dificuldades e tensões insanáveis entre aquilo que
são as regras do jogo político e a efetiva protecção das liberdades
concretas. O alargamento do papel do Estado, para lá da protecção dos
direitos fundamentais, administração da justiça e de safety nets bem
contratualizadas, concentrando na ação coletiva um conjunto de funções
tidas como sociais e de regulação, conduziu-nos a um modelo de sociedade
que privilegia excessivamente liberdades prescritivas (ou ditas
positivas), em detrimento ou esvaziando liberdades negativas básicas
(tais como as apresentaram Stuart Mill ou Isaiah Berlin). Ora, o recurso
aos mecanismos democráticos para regulação de inúmeros aspetos da nossa
vida social conduz às perplexidades a que assistimos em inúmeros países
ocidentais, em que uma larga franja da população, não se revendo nos
que presidem ao poder político, não compreende que grande parte da sua
agonia é fruto, precisamente, da excessiva concentração de funções na
esfera estatal, que lhes restringe – para lá do que é necessário – as
liberdades individuais.
Em
muitos casos, a democracia tem-se tornado numa ditadura da maioria,
reduzindo as liberdades individuais. Tal é resultado da tentação de
querer imputar “valores” à própria democracia, como se um sistema de
governo funcional tivesse em si mesmo uma dimensão de promoção de
valores ou de um dado programa político – que não tem (ou, dito de outra
forma, não deveria ter). Em Portugal, por estes dias, vivemos
precisamente este drama perante a falência óbvia dos sistemas de saúde e
de segurança social, sem que nenhuma força política tenha a coragem de
dizer por medo de “sacrilégio”, o que é mais do que sabido: temos Estado
a mais na saúde e na previdência.
É
por isso curioso assistir a tão significativo enaltecimento da
Monarquia, num tempo em que é evidente em tantos Estados que escolheram o
republicanismo que muitos cidadãos se sentem defraudados com a resposta
política.
Desde
logo, o desalento é transversal, não sendo monopólio de nenhuma área
política. Mas como poderia o resultado ser diferente? Como poderia não
haver desilusão, se a desproporção que existe entre as expectativas que
os cidadãos colocam nos políticos e no Estado, tal a multiplicidade de
funções que se concentram na esfera Estatal, e a forma como a “soberania
popular” é exercida, é enorme?
Desde
logo, o exercício da democracia, que se traduz no voto, é hoje quase um
expediente. Os cidadãos, num só ato, por intermédio de um único voto,
têm de escrutinar milhares de decisões com impacto direto sobre a sua
esfera individual, num processo de síntese complexo e por vezes
contraditório. Num só voto, temos de expressar tudo o que pensamos –
quando pensamos – sobre educação, saúde, reformas, economia, cultura, e
coisas até que ignoramos existir, mas que impactam na nossa vida
quotidiana, num exercício que é completamente frustrante. O processo
eleitoral perdeu, no atual contexto, a sua vocação contratualista, o seu
carácter de agência, para se tornar num cálculo para-matemático onde
buscamos desesperadamente um mínimo denominador comum que sustente a
nossa decisão. Em boa medida, o voto do cidadão em pouco difere daquilo
que nas relações privadas apelidamos de “contrato de adesão”, onde a
liberdade do cidadão se limita a dizer “sim” ou “não” à totalidade de um
programa político.
Acresce
que a omnipresença da esfera pública aliada à imposição da escolha
democrática tem vindo a enfraquecer de sobremaneira quer o vínculo
contratualista quer os mecanismos de controlo do fenómeno político,
criando o ambiente propício para que à volta do Estado gravitem uma
pluralidade de interesses particulares ou corporativos que, capturando
os mecanismos de decisão, redistribuem entre si, sob a proteção de um
complexo manto legal, os frutos do poder concentrado, fora da tutela da
generalidade dos cidadãos. O Estado e os seus agentes têm o monopólio do
uso da força, da lei, dominam uma rede de interesses, de subvenções,
desenvolveram retóricas que justificam a(s) sua(s) própria(s)
existência(s), atuando numa teia intrincada e de difícil compreensão,
ainda assim percetivelmente incoerente e incongruente com muitos dos
fins que assume(m) perseguir.
Não
obstante as dificuldades que enfrenta a sociedade britânica, no Reino
Unido, a Monarquia tem funcionado como elemento de defesa da tradição,
ou seja, de tudo aquilo que é considerado válido e resiste à erosão dos
tempos, sendo os monarcas mais apreciados que os próprios políticos.
Numa comunidade onde a lei tem esse carácter consuetudinário, com uma
forte marca da intemporalidade, a Monarca, não tendo sido eleita, teve
uma enorme aceitação do Povo, não apenas pelo que foi, mas pelo que
representa – uma tradição, um sistema legal, e um tipo de sociedade que
os britânicos querem proteger. E o facto de o Reino Unido, nas suas boas
(e más) escolhas, ter sido capaz de manter a sua marca, continuando a
ser uma das nações mais prósperas e emblemáticas do mundo, com
instituições políticas de excelência, faz com que grande parte dos
cidadãos do mundo olhem para a sua monarquia como algo que lhes merece a
atenção e – diga-se – admiração e respeito.
Apesar
de ter crescido rodeado de histórias de reis e rainhas, e do meu
próprio nome me ter sido dado em homenagem direta a um rei visigodo que
dedicou a sua vida à reconquista, algures no século VIII, nunca tive
simpatias monárquicas. A democracia tem, mesmo onde ela apresenta
inúmeras fragilidades, uma importante virtude: a democracia e o voto
popular, como nos ensina Popper, funcionam como válvula de escape,
exprimindo-se na capacidade de despedir ou expulsar governos, sendo isso
bem mais importante do que propriamente na concessão de um mandato para
um programa político. O voto é cada vez mais uma reação, uma
penalização, do que propriamente uma adesão a um conjunto de medidas
propostas que acentuem o carácter contratualista que deveria existir
entre eleitores e eleitos. Uma eleição é, aliás, a derradeira forma de
expulsar governos sem recurso à violência ou à insurreição (algo que
irresponsavelmente tantos fingem ignorar no caso angolano, ao permitirem
que o MPLA se perpetue sem legitimidade no exercício da governação).
Tal não significa que um Estado de Direito não possa ser virtuoso,
próspero, e bem governado, num equilíbrio entre instituições eleitas
democraticamente, chefiadas por um Monarca, se tal merecer o acolhimento
da maioria da população, e a aristocracia perceber que o seu estatuto é
muito mais um fardo, e muito menos, um direito.
Atrevo-me
a escrever que no mundo complexo em que vivemos, em que as cidadanias
são cada vez mais globais (não se identificando as pessoas comuns
estritamente com os limites daquilo que é o seu território de origem
vinculado a uma ideia de soberania), em que os cidadãos têm aspirações
pessoais próprias e uma potencial autonomia individual para as realizar
que colide com a excessiva presença do Estado na tomada de decisões que
deveriam ser suas, as principais preocupações dos cidadãos
descomprometidos deveriam ser, desde logo, a clara redução das funções
que devem estar concentradas nas mãos do Estado, e que são limitadoras
das suas liberdades concretas; e a procura de mecanismos eficazes de
tutela dos agentes públicos. Precisamos de menos democracia (no sentido
de devolver aos cidadãos inúmeras decisões que hoje estão concentradas
na esfera pública, funcionando burocraticamente sob decisão coletiva), e
de mais Estado de Direito (no sentido dos cidadãos terem os seus
direitos, liberdades e garantias protegidos por via legal, e tutelados
num quadro efetivo de separação de poderes). Ao contrário do que muitos
enunciam, o que protege um cidadão comum é o bom funcionamento da lei,
num contexto de uma efetiva separação de poderes, e não a democracia.
Aquilo que realiza o indivíduo é o exercício concreto, por si próprio,
das suas liberdades, e não tanto a transferência em massa para terceiros
de uma fatia significativa daquilo que são as suas aspirações, que
tendem a ser capturadas por agentes por conta de interesses
conflituantes com os do cidadão comum.
Este
tema, como disse, não é propriamente novo, apesar das suas ramificações
permanecerem atuais. A esse propósito recomendo uma nota muito simples
mas clara – “A frustração do ideal democrático”
– do André Azevedo Alves, a propósito de um texto de Hayek, incluído
numa das suas obras fundamentais: Law, Legislation and Liberty.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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