Bandeira nacional, integridade territorial e sistema jurídico único são valores que o voto esmagador pela rejeição tentou minar. Vilma Gryzinski:
A
bolsa subiu, o peso caiu e outros sinais indicaram que os chilenos
optaram pelo realismo ao rejeitar a proposta de uma nova constituição.
Mesmo
ao custo de parecerem esquizofrênicos: 78% dos eleitores que foram às
urnas aprovaram a criação de uma constituinte em 2020. A maioria também
elegeu representantes de esquerda e colocados sob o rótulo genérico de
progressistas. E o quadro se completou com a eleição de um presidente
que se diz socialista democrático, mas também já se definiu como mais
radical do que os comunistas, Gabriel Boric.
Quando
os eleitores se depararam com o resultado, um esmagador volume de 388
artigos distribuídos em 178 páginas criando um Estado tão hipertrofiado
que entre seus deveres estava “proteger a gastronomia nacional”, caiu a
ficha.
A
rejeição avassaladora de 62%, muitos pontos acima da diferença de 10%
prevista pelas pesquisas, expressou o repúdio às propostas que as
esquerdas deslumbradas achavam o máximo. A mais rejeitada criava um
estado plurinacional e um novo sistema de justiça para acomodar as
tradições dos povos indígenas – mapuches na maioria -, que passariam a
ser “coordenadas em plano de igualdade com o Sistema Nacional de
Justiça”.
Pode
fazer sentido na Bolívia, onde 55% da população é indígena e 28%,
mestiça. No Chile moderno e dinâmico das últimas décadas soou não só
como um sinal de atraso, mas como um perigo. Na região de Araucária,
existe uma organização armada de mapuches que atacam fazendeiros e
outros produtores, incendeiam florestas e bloqueiam estradas. Até o
esquerdista Boric teve que mandar o exército para proteger a população
dos atos de violência.
Reconhecer
“os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”,
como diz a constituição brasileira, é a atitude correta em relação aos
povos indígenas – embora não livre de conflitos. Os cerca de 900 mil
indígenas brasileiros são 0,47% da população. No Chile, são 13%. Com o
estabelecimento de um status separado para eles, seria criado um grupo
privilegiado e até, se o sentimento se espalhasse, separatista, com
amparo no texto constitucional.
A
maioria dos chilenos não gostou, acreditando que a criação de mais
direitos para um grupo, mesmo que for para reparar graves injustiças do
passado, desequilibra o conceito de igualdade. Um só país, com
território indivisível e símbolos como a bandeira respeitados parecem
ideias reacionárias, principalmente diante do entusiasmo de grêmio
estudantil do texto constitucional rejeitado, mas estão profundamente
arraigadas.
No
caso da bandeira, teve o agravante ocorrido durante um evento de apoio à
aprovação. Um integrante de um grupo de drag queens enfiou uma bandeira
entre as nádegas, expostas para o público. As colegas falaram em
“abortar o Chile”. Imaginem o sucesso disso com eleitores que não gostam
nada desse tipo de show.
Heraldo
Muñoz, ex-chanceler no governo da socialista Michelle Bachelet e
ex-embaixador no Brasil, resumiu criteriosamente no El País o que deu
errado: “O processo constitucional esteve repleto de declarações e
performances infelizes de alguns constituintes, premunidos de um
espírito refundacional que gerou reticência entre a população e foi
rechaçado porque surgiram dúvidas, inclusive em setores de
centro-esquerda, sobre normas relativas à plurinacionalidade, à unidade
do Estado, ao sistema político, aos pesos e contrapesos em um sistema
presidencial, à institucionalidade judicial”.
Nicolás
Maduro achou que tinha que meter a colher na “derrota do projeto
histórico” e falou sobre “a dor para os povos da América Latina e do
Caribe”. E ainda espetou Boric: “Faltou uma liderança firme, clara,
credível, com apoio popular, que se pusesse à frente do texto
constitucional”.
Boric
sabia que a constituição “woke”, como é moda dizer, seria rejeitada e
preparou o terreno para não parecer um perdedor total, o que não é muito
fácil diante do fato que ele próprio criou um ar de plebiscito sobre
seu governo, de apenas seis meses. Anunciou “prontos reajustes” no
governo e gestos em direção à oposição. Apelou a um diálogo “sem
maximalismos, violência e intolerância”. Na derrota, agiu certo. Tem que
não se emparedar mais ainda do que já fez ao apostar tanto na aprovação
da nova Carta Magna.
O
Chile não está “polarizado”, “dividido” ou mergulhado em incertezas. Ao
contrário, uma certeza muito grande foi expressa nas urnas: 62% da
população não quer uma constituição que faça sucesso na “bolha” – as
elites das redes sociais e dos meios de comunicação seduzidos pelas
políticas identitárias – e não diga de onde sairiam os recursos para
criar o paraíso sobre a terra, incluindo o dever do Estado de combater
as mudanças climáticas. Criar paraísos é uma atividade comprovadamente
perigosa como se viu ao longo da história humana, por redundar em seu
oposto.
Uma
nova constituição foi o resultado de um pacto nacional para criar uma
alternativa aos protestos que a certa altura pareciam inclinados a
devorar o país inteiro. Esse processo continua. “Claramente, haverá uma
volta ao consenso centrista”, disse ao El País o diretor de uma
consultoria política, Juan Pardo.
“Consenso
centrista” pode não ser sexy como as propostas de refundação, mas é o
que garante processos civilizados e construtivos – inclusive aos 38% que
votaram pela constituição rejeitada.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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