O novo “perigo para a Democracia” é agora mais sutil e está mais próximo, e em vez de encarnar figuras masculinas, com ar de ferrabrases, assume a forma de uma mulher. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
Os
alarmes vão subindo de tom, enquanto, num coro orquestrado, os
porta-vozes euro-americanos da esquerda liberal chique – Le Monde, El
País, La Repubblica, The Guardian, The New York Times – anunciam o novo
perigo iminente. Desta vez o perigo não assume a forma de um milionário
populista, como Trump, ou de um militarista, como Jair Bolsonaro (que o
impoluto Lula da Silva irá neutralizar em Outubro); ou de
paleocatólicos, como os polacos do Direito e Justiça, ou sequer do
Inimigo Número Um do Progresso e das Luzes, o demónio reaccionário de
Budapeste, Viktor Orbán. O perigo é agora mais subtil e está mais
próximo, e em vez de encarnar figuras masculinas com ar de ferrabrases,
assume a forma de uma mulher. Uma mulher de 45 anos, talvez de aspecto
demasiadamente feminino para os fluidos gostos dos partidários do novo
despertar; uma mulher com o ar tranquilo de executiva de outros tempos
ou até de arcaica dona de casa americana, saída de um dos idílios
paternalistas de Norman Rockwell. Um perigo.
O diabo de saias
O
perigo é agora Giorgia Meloni, líder do partido Fratelli d’Italia e,
nessa qualidade, cabeça da coligação de centro-direita que, ao que tudo
indica, irá vencer as eleições italianas de 25 de Setembro.
Numa
sondagem de vários institutos, anunciada pela Sky TG24 a 27 de Agosto, o
Fratelli surge como o primeiro partido, com 24,7% das intenções de
voto; seguem-se o Partito Democratico (PD), com 22,7%, La Lega, com
13,4%, 5 Stelle, com 10,9%, Forza Italia, com 8,4%, Terzo Polo, com
5,9%, I Verti/Sinistra, com 3,4%. Depois, vem uma série de partidos com
menos de 3% de espectativas de voto.
O
problema é que, em coligação, a vantagem do centro-direita é manifesta:
os Fratelli de Meloni (24,7%) estão unidos à Lega de Salvini (13,4%) e à
Forza Italia de Berlusconi (8,4%) e a soma dos três é 46,5%. Contra, a
coligação da esquerda, Partito Democratico com I Verti/sinistra e +
Europa, fica-se pelos 29,5%. O Movimento 5 Stelle vai às urnas sozinho.
Assim,
e dado o sistema eleitoral italiano, que premeia as maiorias, é natural
que a coligação liderada por Meloni tenha uma significativa maioria de
lugares no Parlamento. O actual sistema eleitoral foi consagrado pelas
reformas constitucionais a partir de 2017: é um sistema misto
proporcional e maioritário que determina que 148 deputados e 74
senadores (37% do Parlamento) são eleitos em colégios uninominais, e os
restantes, a maioria, 244 deputados e 122 senadores, são eleitos de
forma proporcional.
Foi
a lei constitucional de 19 de Outubro de 2020, votada por uma
esmagadora maioria, que reduziu o número de deputados de 630 para 400 e o
número de senadores de 315 para 200. A Itália, que era o país europeu
com um maior número de parlamentares eleitos pelo povo (945 antes da
reforma aprovada por referendo popular em 2021), deixou então de o ser.
Com
as expectativas de voto indicadas pelas sondagens, o centro-direita
pode esperar cerca de 250 deputados no Parlamento e de 125 senadores, o
que fará de Giorgia Meloni a próxima primeira-ministra de Itália, com
uma larguíssima vantagem.
O “perigo fascista”
Perante
este cenário – e mesmo descontando a ignorância negligente ou culposa
da generalidade dos jornalistas e comentadores sobre a Direita, as suas
ideias, doutrinas e movimentos, que tende a aplicar a tudo o que não é
esquerda o rótulo de “extrema-direita” e de “fascismo”, prescindindo,
por uma vez, dos seus afamados “fact checks” –, percebe-se o alarme
reinante.
É
que a Itália é um país importante da Europa e da União Europeia, e uma
vitória daquilo a que neo-esquerdistas, tardo-comunistas e ignorantes
chamam “pós-fascismo” ou “ultra-direita” não deixará de ter
consequências.
Mas haverá razão para tanto medo?
Os
termos fascismo e fascista tornaram-se rótulos usados como insulto para
neutralizar ou desqualificar inimigos políticos. Até no interior da
Esquerda foi assim: nos anos Trinta, os comunistas de Moscovo – Estaline
e Zinoviev – usaram o termo para o arremessar à social-democracia
alemã, para eles cúmplice do fascismo. Mais tarde, durante a Guerra Fria
e o conflito sino-soviético, várias seitas radicais esquerdistas o
viraram contra os soviéticos, que descreviam como “sociais-fascistas”.
No
seu programa fundacional, o fascismo italiano procurava fazer convergir
a comunidade nacional com a ideia de justiça e solidarismo social. O
combate à decadência foi determinante na ideologia fascista e a ideia de
ruptura revolucionária e autoritária com a ordem parlamentar liberal
foi essencial na doutrina e verificou-se na prática. Mussolini, o
inventor do Fascismo, tinha uma ascendência intelectual e social
socialista revolucionária, de sindicalista militante. Combinava essas
raízes com a experiência das trincheiras e com uma cultura política
italiana dominada pelo realismo maquiavélico. As teses paretianas sobre a
circulação das elites e a permanência da oligarquia são também
essenciais para perceber as raízes do fascismo.
Para
a caracterização e o entendimento do triunfo do fascismo é ainda
preciso levar em conta mais dois fenómenos: a “Grande Guerra” e a
revolução bolchevique. A Grande Guerra acabou com a Belle Époque e com a
douceur de vivre da Europa conservadora burguesa e liberal retratada
por Proust, por Stefan Zweig e Joseph Roth. E destruiu os impérios
continentais – o dos Habsburgo, o dos Hohenzollern, o dos Romanoff e até
o Otomano – criando na MittelEuropa e na Eurásia uma grande
fragmentação nacionalitária e identitária.
Nesta
confusão, depois da Revolução de 17, o medo dos bolcheviques levou as
classes altas e as classes médias a apoiar as reacções anti-liberais,
que foram de duas espécies: as militarizadas, ordeiras e conservadoras,
como as que levaram ao poder Horthy, Piłsudski, Primo de Rivera e, em
Portugal, depois da Ditadura Militar, Salazar; e as revolucionárias,
fascistas ou nacional-populistas, que aconteceram na Itália, por via de
um misto de movimento de massas e golpe de Estado – a marcha sobre Roma,
em Outubro de 1922; ou na Alemanha, 11 anos depois, com o
Machtergreifunghitleriano. Nestas, os instrumentos não foram os
militares, os Exércitos, mas os movimentos de massas e as vitórias
eleitorais.
Estas
reacções ou revoluções – as nacionais autoritárias e as fascistas
(sendo o nacional-socialismo um caso particular de fascismo pelo factor
racial e as consequentes políticas de extermínio) – tiveram em comum a
rejeição do processo de livre competição democrática partidária como
processo de selecção dos governantes, uma rejeição fundamentada em
textos teóricos e na prática política. E controlos policiais e censórios
às liberdades fundamentais.
Ora
os movimentos e governos que a Esquerda hoje acusa de fascistas (que
corresponderiam aos fascismos italianos ou ao hitlerismo) e de
“ultradireita” (que corresponderiam mais ao nacionalismo autoritário,
tipo Salazar ou a Franco, embora para a maioria da crítica pouco
informada funcione a amálgama) não têm, nem na teoria nem na prática,
qualquer espécie de anti-democratismo. Na Polónia e na Hungria há
oposição e eleições competitivas, juízes independentes e Estado de
Direito.
Direita Nacional e Popular
Há,
no entanto, traços comuns, tanto entre os movimentos fascistas e os
regimes autoritários do entre-guerras, como entre os nacionalismos
populares dos nossos dias: a defesa dos valores da Nação, da História,
da independência nacional ou da Família. São, de resto, valores comuns
às direitas, e o seu abandono pelos partidos clássicos e conservadores
explica também o aparecimento e progresso dos novos movimentos ditos
populistas.
Na
Esquerda, o facto de os comunistas serem pela igualdade e os
sociais-democratas também, não leva ninguém a chamar “comunistas” ou
“estalinistas” aos sociais-democratas, nem a fazer amálgamas. O mesmo
não acontece na Direita em que qualquer paralelo, por mais ténue, é
prontamente amalgamado ao hitlerismo. E no sentido de ruptura
ideológico-institucional há paralelos entre fascistas de ontem e
populistas de hoje: o fenómeno da decadência, por exemplo, que há um
século tinha mais valor e significado político, é hoje é sentido pelos
europeus das classes trabalhadoras e médias, na desindustrialização e
desnacionalização das suas economias. E o populismo é uma reacção ao
aparente desinteresse da sorte dos povos das elites tradicionais
económicas e políticas, mais voltadas para os “grandes desígnios” da
comunidade internacional, do planeta e da espécie humana, animal e
vegetal.
É
também uma reacção aos riscos da marginalização das nações europeias na
luta China-Estados Unidos, sobretudo na lógica da “cruzada democrática”
de Biden, que as atira para o dualismo The West against the Rest, com
os europeus a suportarem os custos do enfrentamento com a Rússia por
causa da Ucrânia. Identitariamente, em vez de uma “conspiração dos
judeus”, há uma imigração com características culturais e incidências
civilizacionais que parte da população europeia considera alheia, hostil
e desintegradora para a sua identidade nacional.
E,
finalmente, reage ainda a uma ameaça paralela e também
internacionalista, embora de natureza diferente, à do bolchevismo de há
cem anos: o ataque cultural aos valores e instituições euro-ocidentais –
à Religião, à Nação, à Família – pelas novas ideologias do Wokismo e da
Cultura do Cancelamento.
Meloni
e os FDI respondem a tudo isto, caracterizando o que é histórico,
passado e o que permanece: Mussolini é História e pertence à História;
como o fascismo e o uso da violência e as imposições anti-liberais e
anti-democráticas do Estado totalitário são História e pertencem à
História. O objectivo da coligação italiana de Centro-Direita é defender
os valores nacionais e conservadores em termos democráticos,
eleitorais, procurando e conquistando o voto do povo.
E
hoje são as elites do sistema que, através dos seus órgãos de formação,
informação e deformação, são desconfiadas e críticas do voto popular,
ao ponto de insistirem permanentemente no perigo do populismo, como uma
forma de “enganar o povo”, repetindo argumentos que há cem anos os
fascistas e os autoritários usavam para justificar a supressão das
liberdades e da Liberdade. Veja-se o processo, em Itália, de adiar as
eleições, que durou até Draghi se demitir, precipitando a crise.
Isto
ao mesmo tempo que, nas áreas onde estabeleceram, senão o monopólio,
pelo menos a hegemonia, os Woke e os seus cúmplices reprimem, expulsam,
regulam, silenciam, cancelam, intimidam.
Mas
fora daí – e apesar de uma propaganda sistémica e sistemática – a
generalidade do povo italiano parece manter a sua liberdade de escolha.
Vamos ver no dia 25.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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