Por que o Brasil insiste em atrelar o uso da plataforma ao "empoderamento" feminino é uma pergunta a ser feita por quem quer que se preocupe a sério com a dignidade dos mais vulneráveis. Maria Clara Machado para a Gazeta do Povo:
Qualquer
internauta que pesquise notícias em português sobre o OnlyFans, rede
social que permite a comercialização de conteúdo adulto, encontra
rapidamente dezenas de histórias de pessoas que afirmam ter enriquecido
na plataforma. “Ícones do OnlyFans destacam as vantagens da plataforma”,
anuncia uma coluna
publicada no último mês de agosto. “Por lá, até 2021, já existiam mais
de 150 milhões de usuários cadastrados e 1,5 milhão de criadores de
conteúdo”, continua o texto. “Mas, afinal, qual o lado bom deste
fenômeno que ainda é carregado de estigma e de tabus?".
Se,
por um lado, uma pesquisa recente revelou que mais de 50% das modelos
que vendem conteúdo íntimo no OnlyFans o fazem sem que seus pais e
amigos saibam, por outro, o esforço que parte da imprensa brasileira faz
para arrefecer o dito “estigma” sobre a plataforma - que, diga-se de
passagem, rendeu nada menos do que 2,62 bilhões de dólares ao acionista
majoritário nos últimos 18 meses - é digno de nota.
Casos como o da ex-professora que diz ter ficado milionária em três anos na rede, da atriz que diz se sentir
"mais segura financeiramente", da ex-frentista que afirma ter faturado
mais de meio milhão de dólares e da “ex-miss BumBum” que “conquistou a liberdade financeira” no OnlyFans aparecem dia após dia em alguns dos principais portais de notícias do país.
“Pornografia dos privilegiados”
Ocorre
que, a exemplo do que acontece com o restante da indústria sexual, não é
preciso investigar muito a fundo para perceber que os alardeados
“sucessos” do OnlyFans são mais uma face do que a ensaísta canadense
Melinda Selmys chama de “pornografia dos privilegiados”, na qual “a
experiência de um pequeno grupo é apresentada como a norma, enquanto as
realidades violentas, coercitivas e traumatizantes da indústria do sexo
desaparecem com o uso da varinha mágica da ‘escolha’”.
Ainda
em 2020 - ano no qual o OnlyFans cresceu cerca de 600% em meio à
pandemia -, a revista britânica The Spectator alertou para a presença
não apenas de atrizes, cantoras e celebridades virtuais entre os
usuários (são elas, é claro, as que mais faturam com os “nudes”), mas de
mulheres desempregadas que precisavam pagar as contas e acabavam se
arrependendo da exposição. Uma das entrevistadas pela reportagem contou
que excluiu a conta depois que um de seus “clientes” publicou uma de
suas fotos sem sutiã em um site aberto de pornografia.
“Cada
assinante me pagava dez dólares por semana e, tirando a comissão do
OnlyFans, eu ficava com 8 dólares. Precisava conseguir o maior número
possível de assinantes para conseguir pagar meu aluguel, o que significa
postar novas fotos o dia todo, todos os dias e concordar com pedidos
cada vez mais explícitos. No final, me senti exausta e degradada, e
cancelei minha inscrição”, contou a mulher à reportagem.
Tudo à venda?
O relato não deveria ser surpresa: segundo informações
fornecidas pelo próprio aplicativo, o ganho médio dos criadores de
conteúdo é de 180 dólares (cerca de 940 reais, menos de um salário
mínimo) por mês. O problema é que mesmo este valor passa uma falsa
dimensão do problema, dado que 1% das contas recebe um terço de todo o
dinheiro arrecadado na plataforma, de modo que a maior parte dos
usuários recebe menos de 800 reais por mês.
Em
contrapartida, ainda que o negócio fosse lucrativo para uma parcela
maior dos usuários, é sempre o caso de se perguntar, a exemplo do que
propõe o professor de Harvard Michael Sandel, se é ético que
determinadas esferas da vida humana - como o sexo, tão atrelado à
própria dignidade - sejam expostos à lógica do mercado. "Queremos uma
sociedade onde tudo esteja à venda? Ou será que existem certos bens
morais e cívicos que não são honrados pelo mercado e que o dinheiro não
compra?", questiona o autor.
No ano passado, foi a vez do New York Times acordar para o “outro lado” do sucesso do OnlyFans: uma das entrevistadas
pelo jornal é uma jovem de 22 anos que, demitida três vezes durante o
pico da crise e sem dinheiro para arcar com as mensalidades da
faculdade, recorreu ao OnlyFans, a despeito do temor de não conseguir
outros empregos no futuro.
Finalmente, em maio deste ano, outra reportagem
destrinchou o fenômeno dos “cafetões digitais”: homens que,
literalmente, abriram “agências virtuais” para “auxiliar” mulheres que
desejem lucrar na plataforma. “O OnlyFans é uma grande oportunidade não
apenas para moças sexy, mas para os homens também. O que estou propondo
aqui é a cafetinagem eletrônica” (N/E: a expressão utilizada pelo
entrevistado foi “e-pimping”), afirmou um dos personagens da matéria.
Segundo
uma “sobrevivente do OnlyFans”, estes homens costumam abordar modelos
via Twitter oferecendo o “gerenciamento” de sua imagem virtual em troca
de conteúdo. “As pessoas estão desesperadas e caem nessa por
ingenuidade. Isso naturalmente cria uma oportunidade perfeita para
chantagem e outros tipos de manipulação. Acontece o tempo todo e não é
falado o suficiente”, revela a fonte anônima.
Abuso sexual infantil
A
exposição de jovens mulheres desesperadas a um mercado degradante e a
consequente exploração das mesmas por empresários ávidos por lucro - a
começar pelo próprio criador da plataforma,
Timothy Stokely — é só a ponta do iceberg de problemas que acompanha o
crescimento exponencial do OnlyFans, um enredo que segue à risca o
padrão das grandes empresas de tecnologia que se vêem às voltas com
acusações de material pornográfico ilegal circulando em suas
plataformas. À denúncia da presença de menores de idade na rede, o
OnlyFans meramente “reforçou estar em dia com as medidas de segurança”.
Enquanto
isso, grupos como o National Center on Sexual Exploitation (NCOSE) -
uma das mais antigas organizações nos Estados Unidos a abordar a
intrínseca relação entre pornografia, prostituição, exploração sexual e
tráfico humano - acumulam novas denúncias: um investigador do
Departamento de Segurança Interna dos EUA chegou a reportar à ONG que
encontra entre 30 e 50 imagens de abuso sexual infantil por dia
“claramente vindas do OnlyFans”.
Para
o NCOSE, o OnlyFans é, em suma, um grande "esquema de pirâmide" da
exploração sexual, além de oferecer um "ambiente seguro" para práticas
que, aos poucos, ganham a atenção da imprensa internacional. Por que o
Brasil insiste em atrelar o uso da plataforma ao "empoderamento"
feminino é uma pergunta a ser feita por quem quer que se preocupe a
sério com a dignidade dos mais vulneráveis.
Em
artigo para a revista conservadora First Things, Samuel D. James lembra
que no Inferno de Dante, os que lucram com a exploração da sexualidade
alheia são punidos com maior severidade do que os promíscuos. "A ordem
social progressista contemporânea é uma ordem de trabalhadores", pontua o
autor. "Corpos nus trabalhando dia e noite, sacrificando sua dignidade e
reputação pela oportunidade de ciscar as migalhas que caem da mesa da
Big Tech".
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário