Seja qual for o resultado das eleições de outubro, o Brasil continuará sofrendo as consequências do ódio político. Carlos Graieb para a Crusoé:
Jair
Bolsonaro decidiu que vai intensificar os ataques a Lula nas próximas
semanas. A ordem, além de ser agressivo no tratamento de temas como
corrupção e aborto, é levar às últimas consequências a ideia de que
estas eleições representam a luta do Bem contra o Mal. Como aconteceu
nesta quarta-feira, 14, durante um discurso de Bolsonaro, Lula deve ser
associado ao “capeta”. E não apenas como “figura de linguagem”
(expressão que o presidente adotou recentemente), mas como se o petista
estivesse de fato ligado ao diabo, ao espírito maligno da Bíblia, em
cuja existência milhões de cristãos brasileiros acreditam. Quanto à
esquerda de forma geral, Bolsonaro também já deu seu veredito: é preciso
“extirpá-la” do cenário político.
A
esquerda resiste a misturar política com religião. Mas Lula não hesita
em igualar Bolsonaro ao que existe de mais próximo do diabo nos livros
de História, o nazista Adolf Hitler. Ele fez essa comparação na
segunda-feira, 12, durante uma entrevista a um canal de TV. Antes disso,
no 7 de Setembro, depois de assistir às manifestações bolsonaristas no
Rio de Janeiro, Lula recorreu a outra analogia para mostrar sua aversão
não só ao candidato inimigo, mas também às pessoas que ocupavam as ruas
naquele dia: disse que lhe faziam pensar numa reunião da Ku Klux Klan
(“cuscuz klan”, na sua pronúncia), o violento grupo de supremacistas
brancos fundado no século XIX, depois da libertação dos escravos nos
Estados Unidos. Como a repercussão foi péssima, ele tentou consertar,
dizendo que só se referia aos grupos de homens brancos que cercavam
Bolsonaro no carro de som. Com ou sem emenda, o discurso não é nada
auspicioso para alguém que afirma ter o propósito de pacificar o país.
A
crítica contundente é bem-vinda nas eleições. Até mesmo um certo grau
de agressividade entre os candidatos é aceitável. Os dois líderes nas
pesquisas de intenção de voto, no entanto, ocupam-se em desumanizar um
ao outro e, mais grave, estendem essas manifestações de ódio aos que
apoiam o adversário. Essa é uma forma de alimentar rancores e assegurar
que, mesmo depois das eleições, o Brasil vai permanecer no estado febril
em que se encontra. Nesta quinta-feira, 15, o Datafolha divulgou uma
pesquisa mostrando que 67,5% dos eleitores estão com medo de sofrer
agressões por motivos políticos. Aqueles que têm “muito medo” são 49,9%.
Políticos
carismáticos que almejam a presidência da República e dispõem dos
generosíssimos recursos públicos do fundo eleitoral para fazer campanha
têm inegável influência sobre a maneira como se vive a política no
Brasil. Mas seria incorreto atribuir a eles toda a responsabilidade.
“Uma vez que o gênio saiu da garrafa é muito difícil aprisioná-lo
novamente”, diz o cientista político holandês Cas Mudde, autor do livro
recém-lançado A Extrema Direita Hoje (Eduerj) e um dos principais
estudiosos do populismo na atualidade. “Líderes importam, mas são no
máximo catalisadores de processos que já estão em andamento na
sociedade. Eles não têm controle pleno sobre esses processos, embora
possam lucrar com eles.”
O
cientista político Pedro Marques, pesquisador da Universidade Federal
de Minas Gerais, afirma que há três tipos de polarização entre
eleitores: a ideológica, a social e a afetiva. No primeiro caso, as
pessoas divergem sobre programas políticos. No segundo, são diferenças
sociais que causam a divisão. No terceiro, até mesmo a imagem ou o som
da voz de quem pertence ao time contrário provoca reações viscerais. “Os
sentimentos se tornam cada vez mais negativos em relação aos rivais,
acarretando uma série de dinâmicas ruins para a democracia, como a
intolerância, o viés partidário no consumo de informação e, no limite, a
violência física”, diz Marques. É fácil reconhecer essa lista de
sintomas no Brasil de hoje, mas uma pesquisa recente da Quaest flagra o
fenômeno na esfera afetiva propriamente dita: 43% dos eleitores de Lula e
28% dos de Bolsonaro dizem que ficariam infelizes, ou muito infelizes,
caso tivessem um filho ou filha casado com um simpatizante do grupo
político rival. “Esses números mostram que polarização afetiva dos
brasileiros atingiu índices semelhantes aos dos Estados Unidos, o
exemplo mais notório de país rachado ao meio”, diz o pesquisador.
O
caso americano serve de alerta para quem acha que o fim de um processo
eleitoral pode levar ao distensionamento dos ânimos. Joe Biden assumiu a
presidência em 2021 e adotou um discurso conciliador. Nem por isso, as
rixas internas diminuíram. Atualmente, 72% dos republicanos dizem que os
democratas são imorais e 63% dos democratas dizem o mesmo dos
republicanos. Em 2016, os números eram de 47% e 35%, respectivamente.
Eles também consideram os eleitores do outro partido desonestos e
obtusos, quase na mesma proporção. Apesar de estar sem acesso às redes
sociais e de ser alvo de uma investigação da polícia federal americana, o
FBI, o ex-presidente Donald Trump detém o virtual controle do Partido
Republicano e tem grandes chances de ser escolhido para concorrer à Casa
Branca mais uma vez em 2024.
As
principais pesquisas de intenção de voto sugerem, hoje, que Lula tem
maiores probabilidades de se eleger do que Bolsonaro. Confirmada essa
tendência e feita a transição (com ou sem questionamento golpista do
resultado das urnas pelo atual presidente), é de se perguntar: como o
bolsonarismo vai operar, caso se veja no papel de oposição? “Bolsonaro
age como oposição até quando está no governo”, diz o cientista político
Paulo Cassimiro, professor da UFRJ. “Ele mantém sua base mobilizada
provocando tensão permanente. Além de eventualmente utilizar o discurso
da eleição roubada, como faz Trump nos Estados Unidos, ele poderá
acionar as alavancas que já sabe que funcionam, como as pautas de
comportamento e a ameaça comunista. Além disso, quatro anos de governo
estreitaram os laços do bolsonarismo com os evangélicos e consolidaram
seu apelo para partes das Forças Armadas, do setor agrícola e do
empresariado. Se Lula vencer as eleições, não é difícil imaginar
passeatas e motociatas sendo convocadas com frequência contra ele, a
partir de 2023.” Caso Bolsonaro ganhe a disputa, é natural supor que
confrontos que já estão em andamento com o STF, com setores da imprensa e
com quaisquer grupos que o contrariem vão dobrar de intensidade. Ele já
disse mais de uma vez que todos terão de se ajustar “às quatro linhas
da Constituição” caso ele tenha um segundo mandato – a Constituição tal
como ele a interpreta, é claro.
A
historiadora Lilia Schwarcz lembra que o Brasil já teve um momento
semelhante de polarização política. “Na última gestão de Getúlio Vargas,
o convívio era impraticável. Todo mundo que viveu aquele período diz
que situação e oposição não dialogavam, não se reconheciam, não
autorizavam a existência uma da outra. Com o seu suicídio em 1954,
Vargas adiou uma explosão, mas não evitou que a polarização continuasse
crescendo até desaguar no golpe militar de 1964“, diz ela. As
circunstâncias históricas são outras, o ambiente geopolítico é outro e a
hipótese de um golpe bem-sucedido no Brasil de hoje é nula, apesar das
fantasias que povoam o imaginário dos bolsonaristas mais eriçados. Mas
não há nada de fantasioso num cenário onde as desavenças continuam se
aprofundando e o medo da violência política identificado pelo Datafolha
se perpetua no Brasil.
Não
é impossível fazer a polarização regredir. Em 2016, em meio às
discussões que antecederam o plebiscito do Brexit, a animosidade entre
quem desejava e quem rejeitava a saída do Reino Unido da União Europeia
era fortíssima. A livre entrada de imigrantes no país era um dos temas
mais divisivos e os britânicos se acusavam de xenofobia ou falta de
patriotismo. Mas essa bile refluiu. Um estudo da organização Hope Not
Hate, que procura fomentar a tolerância, mostra que seis anos depois do
plebiscito, a fatia dos britânicos que consideram que o país pode
aprender a lidar com pessoas de diferentes origens e etnias aumentou de
29% para 41%. Um passo necessário, embora não suficiente, para que algo
semelhante aconteça no Brasil é fazer com que a intolerância seja
drenada do discurso político. “Sinto que a situação no Brasil é mais
parecida com a dos Estados Unidos do que com a do Reino Unido, porque o
sistema presidencial dos dois países põe ênfase demais no papel de uma
única pessoa e porque as duas sociedades são muito violentas, até onde
posso enxergar”, diz o holandês Cas Mudde. Ninguém disse que seria
fácil.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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