Ao contrário do que pensa e prega essa elite, a noção de direitos humanos não começou na Revolução Francesa, apresentada como o ápice do desenvolvimento político e moral da humanidade. Roberto Motta para a Oeste:
Uma
elite urbana de alta renda controla hoje o poder governamental, o poder
corporativo e o discurso público na maior parte do planeta. Essa elite
vive embriagada pelas piores partes do radicalismo da Revolução Francesa
de 1789, e esqueceu, ou nunca conheceu, a Revolução Gloriosa de 1688 e a
Revolução Americana de 1766.
Ao
contrário do que pensa e prega essa elite, a noção de direitos humanos
não começou na Revolução Francesa. As origens do conceito de direitos
civis se perdem na história, e já estavam claramente presentes na
tradição judaico-cristã.
A
Magna Carta, apresentada pelos barões feudais ingleses ao rei João Sem
Terra, em 1210, foi, na era moderna, provavelmente o primeiro documento a
impor limites ao poder dos soberanos.
Os
direitos dos cidadãos ingleses foram depois estabelecidos na Declaração
de Direitos (Bill of Rights) escrita em 1689, durante a Revolução
Gloriosa, que consolidou o poder do Parlamento. O documento, baseado nas
ideias do filósofo John Locke, estabeleceu direitos civis básicos,
confirmou os limites ao poder monárquico, garantiu eleições livres e
liberdade de expressão.
Retrato do filósofo John Locke, de Godfrey Kneller
Isso
aconteceu em 1689 — exatos cem anos antes da Revolução Francesa. A
Declaração de Direitos inglesa foi o modelo usado para redigir a
Declaração de Direitos dos Estados Unidos de 1789 e a Declaração de
Direitos Humanos da ONU de 1948. Mas o mundo parece que esqueceu.
A
maioria de nós não aprendeu isso na escola. Nas aulas de história o
foco é colocado, invariavelmente, na Revolução Francesa, apresentada
como o ápice, ou a origem, do desenvolvimento filosófico, político e
moral da humanidade. Na verdade, como disse a ex-primeira-ministra
britânica Margaret Thatcher, a revolução da França se pareceu mais com
“uma sequência de expurgos, assassinatos em massa e guerra, tudo feito
em nome de ideias abstratas formuladas por intelectuais vaidosos”.
Em
vez de um evento único e homogêneo, a Revolução Francesa foi, na
verdade, uma série de eventos nos quais grupos rivais — principalmente
liberais e radicais — disputaram o controle do Estado francês, com
diferentes vencedores em momentos diferentes, e onde os perdedores
acabaram exilados ou até presos e mortos. A Revolução Francesa cortou a
cabeça de milhares dos seus próprios criadores, e terminou na ditadura
militar do general e imperador Napoleão Bonaparte — e, depois, vexame
dos vexames, na restauração da monarquia.
Esses
são os fatos. Apesar deles, ainda reina hegemônico o pensamento dos
radicais revolucionários franceses, transfigurado pelo marxismo. Esse
pensamento estabelece a primazia de uma suposta “igualdade” sobre todos
os outros direitos, inclusive os direitos à vida, à liberdade e à
propriedade. Igualdade suposta — e entre aspas —, porque é apenas uma
construção teórica revolucionária, ausente, na prática, de todos os
projetos socialistas e comunistas da história, sem uma única exceção.
Há
quem diga que são duas as ideias essenciais da Revolução Francesa,
inspiradoras dos modernos projetos políticos totalitários. A primeira é o
conceito de igualdade absoluta entre indivíduos, a ser imposta a ferro e
fogo (e a guilhotina, fuzilamento e campos de concentração, se
necessário).
A
segunda herança da Revolução Francesa seria o estabelecimento do papel
do Estado como regulador racional do comportamento, do pensamento e do
discurso público. A vida privada desaparece dentro do Estado. É preciso
lembrar que os revolucionários franceses mudaram os nomes dos meses e
dos dias da semana, e estabeleceram até o Culto do Ser Supremo, uma nova
religião estatal que deveria substituir o Cristianismo. Maximillien
Robespierre, o líder dos jacobinos, a facção mais radical da revolução,
foi nomeado como Sumo Sacerdote do culto. Um mês depois ele era
guilhotinado.
Uma
série de marcos históricos conecta a Revolução Francesa ao mundo
moderno. O primeiro pode ser a “Comuna” de Paris de 1871, quando, logo
após a derrota da França na guerra contra a Prússia, um governo
socialista radical tomou o controle da cidade e governou por três meses.
Foi mais uma revolução para empilhar cadáveres e jogar cidadãos contra
cidadãos. A Guarda Nacional enfrentou o Exército francês nas ruas da
cidade, e a experiência serviu de inspiração para radicais de todo o
mundo — incluindo um certo Vladimir Lenin.
Lenin
lideraria a Revolução Russa de 1917. Em 1948 seria a vez de Mao liderar
a Revolução Chinesa. Duas das maiores nações da Terra caíam sob regimes
comunistas. Mas o comunismo, na prática, se revelou bem diferente do
que pregara Marx. Em 1956, as denúncias do premiê soviético Nikita
Kruschev sobre as atrocidades cometidas por Stalin desnudaram o caráter
totalitário e criminoso do regime soviético, chocando militantes
comunistas em todo o planeta.
Desse
choque resultaria uma mudança de estratégia: abandona-se o projeto de
revolução pelas armas em favor da ideia da revolução cultural, nascida
do trabalho de Antônio Gramsci e promovida pela Escola de Frankfurt. Nas
décadas seguintes, outros ativistas e ideólogos ampliam e disseminam a
doutrina que ficaria conhecida como Gamscismo.
Saul
Alinksy, nos Estados Unidos, ensinou aos militantes de esquerda suas
Regras Para Radicais, explicando que “a questão nunca é a questão; a
questão é sempre o poder”. Luigi Ferrajoli, na Itália, criou o
garantismo penal, doutrina de desconstrução da justiça criminal através
da dialética marxista que apresenta o criminoso como vítima da opressão
capitalista que não merece — que não pode — ser punido. Paulo Freire, no
Brasil, inverte a lógica do sistema de ensino com a sua pedagogia do
oprimido, que abandona o aprendizado em nome da mobilização para a
revolução.
Consolida-se
uma progressiva hegemonia da esquerda em áreas-chave da sociedade e do
Estado, como a literatura, o teatro, as artes plásticas, a música, o
cinema, a TV, as escolas públicas e privadas, as universidades e a
justiça, especialmente a justiça criminal. Quase todo o discurso público
passa a ser produzido ou controlado por um ecossistema
político-midiático-cultural-acadêmico de orientação marxista.
Como
explicou Olavo de Carvalho (a citação não é literal): a dominação é tão
completa que se dissolve no ar e passa a ser imperceptível. É o novo
normal: é o marxismo estrutural, parafraseando o grande Gustavo
Maultasch.
O
marxismo aplicado às questões étnicas virou a “teoria crítica da raça“.
O marxismo aplicado ao Direito virou o garantismo penal de Ferrajoli. O
marxismo aplicado à sexualidade virou a ideologia de gênero. O marxismo
aplicado à mídia virou o “combate à desinformação”. O marxismo aplicado
à religião virou a teologia da libertação. O marxismo aplicado à
educação virou a “pedagogia do oprimido” de Paulo Freire.
É
assim que estávamos no início do século 21 — vivendo sob uma hegemonia
marxista estrutural, total e já quase imperceptível —, quando três
fenômenos quase simultâneos começaram a ocorrer. O primeiro foi
tecnológico: a difusão da internet e o surgimento das redes sociais,
catapultado pela popularização dos telefones celulares. De repente, todo
mundo tinha opinião e todo mundo divulgava essa opinião para o restante
do mundo. Uma tia do zap do interior de Goiás podia ter mais leitores
em um post do que o alcance do editorial de um grande jornal.
O
segundo fenômeno foi social: a retomada das ruas brasileiras pela
população de bem, pelo cidadão comum, por famílias, idosos e crianças.
Enquanto no restante da América Latina as ruas são vermelhas, dominadas
por movimentos de extrema esquerda, a ruas no Brasil são verde-amarelas.
Enquanto no Chile os manifestantes queimam igrejas e ônibus, no Brasil —
desde 2014 — eles cantam o Hino Nacional, enrolam-se na bandeira e não
jogam lixo no chão.
O
terceiro fenômeno, entrelaçado com esses dois, foi o renascimento da
direita no Brasil. Esse renascimento começou timidamente, com a
reorganização do liberalismo nacional, impulsionada por entidades como o
Instituto Mises Brasil, o Instituto Liberal, o Instituto Millenium e o
Instituto de Formação de Líderes, e editoras como LVM, Avis Rara e Vide
Editorial. Em seguida, foi a vez de o conservadorismo brasileiro
ressurgir com a criação de inúmeros grupos, como o Movimento Brasil
Conservador, o Instituto Brasileiro Conservador e mais recentemente o
Instituto Conserva Rio, e editoras como Opção C, Editora E.D.A e BKCC,
entre muitas outras.
Liberais
e conservadores perderam a vergonha de assumir sua posição política. A
direita brasileira saiu do armário. Esses três fenômenos, juntos,
tiveram várias consequências. A primeira foi um inédito desafio ao poder
vigente, que perdeu o monopólio do discurso e da comunicação de massa
A
Operação Lava Jato foi outra consequência. É difícil imaginar essa
operação acontecendo em um mundo onde o acesso à informação é controlado
e o sentimento da sociedade não pode ser percebido instantaneamente.
Isso, inclusive, explica o que foi chamado por alguns críticos de
“espetacularização” das investigações — na verdade o que se viu, talvez
pela primeira vez na história brasileira, foi uma preocupação das
autoridades em dar satisfações à sociedade sobre o seu trabalho. Nada
mais natural e republicano do que tentar corresponder aos anseios dos
cidadãos.
O
impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e a prisão e as condenações
de Luiz Inácio foram consequências diretas da mobilização da sociedade,
organizada nas redes e expressa em manifestações de rua cada vez
maiores, coordenadas pelas redes sociais e pelo WhatsApp. Outra
consequência foi a popularização da política: hoje é mais provável que o
brasileiro saiba a composição do STF do que a escalação da Seleção de
futebol — um fenômeno inimaginável há poucos anos.
Por
último, a consequência mais impressionante e de maior impacto: a
decadência, em praça pública, da grande mídia, que entrou em uma espiral
mortal de perda de credibilidade, audiência e receita. O lugar vazio
foi preenchido pela ascensão de uma mídia “alternativa”, liderada tanto
por jornalistas de renome quanto por cidadãos comuns, que descobriram em
si o interesse e a capacidade para o trabalho jornalístico.
Esses
cidadãos comuns — chamados pejorativamente de blogueiros — somos todos
nós. Pela primeira vez na história podemos nos comunicar diretamente,
sem a mediação obrigatória de veículos de imprensa ou de autoridades
acadêmicas. Tudo isso gerou uma forte reação do sistema — ou
establishment, mecanismo, estamento burocrático ou globalistas —, chame
como quiser. Essa reação tomou diversas formas.
A
censura foi ressuscitada, agora de banho tomado, fofa e perfumada, sob
os nomes politicamente corretos de “checagem de fatos” e “combate à
desinformação”. Qualquer publicação que não tenha sido feita por um
veículo da grande mídia — por uma mídia de esquerda, para ser mais
preciso — corre o risco de ser classificada como “fake news”.
Políticos
de oposição mandaram os escrúpulos às favas e mergulharam na exploração
da pandemia para ganhos político-eleitorais. Bom senso e
responsabilidade cederam lugar a uma busca desesperada por “protagonismo
vacinal”, e pelo primeiro lugar em uma competição nacional para
descobrir quem cometeria a violação mais grave dos direitos civis da
população: transportes públicos foram cancelados, portas de lojas foram
soldadas, pessoas foram presas e agredidas apenas por andar na rua,
frequentar praças ou, no Rio de Janeiro — isso eu mesmo testemunhei —
pelo crime de dar um mergulho no mar.
Um
inédito “consórcio de veículos de imprensa” foi formado para garantir o
monopólio midiático em torno de uma mesma narrativa de terror
sanitário. Ativistas políticos disfarçados de jornalistas — filhos do
casamento ideológico de Paulo Freire com Stalin — iniciaram uma guerra
pela disseminação de verdades “científicas” que dispensavam a ciência e
demonizavam qualquer contraditório. “Sou pela vida” virou o grito de
guerra dos jacobinos mascarados.
Globo anuncia os veículos que fazem parte do chamado “consócio de imprensa”
A
mistura tóxica de ideologia, desespero eleitoral e corrupção
intelectual levou ao “fique em casa” totalitário, repaginado agora, em
2022, como “fique em casa, se puder”. Os ideólogos que operam dentro do
sistema de justiça criminal usaram a oportunidade para soltar mais de 60
mil criminosos que estavam presos em todo o país, para preservá-los da
pandemia — e ainda conseguiram uma decisão do Supremo Tribunal Federal
determinando a suspensão de operações policiais nas comunidades do Rio
de Janeiro — supostamente para não atrapalhar as medidas sanitárias. A
suspensão vigora até hoje.
E
o absurdo maior de todos, para o qual, um dia, haverá de ser instalado
um tribunal especial de crimes contra a humanidade: o fechamento das
escolas. Um ato insensato, anticientífico e ideológico que significou,
para várias gerações de crianças e adolescentes, a condenação a uma vida
de ignorância, pobreza, vício, crime e dependência do Estado.
Ao
mesmo tempo em que tudo isso ocorria, o sistema colocava em ação outra
estratégia: o ativismo judicial. Não é necessário detalhar a trajetória
recente do ativismo judicial no Brasil. Isso já foi explicado em livros
espetaculares, como O Inquérito do Fim do Mundo, Sereis Como Deuses: o
STF e a Subversão da Justiça, Suprema Desordem: Juristocracia e Estado
de Exceção no Brasil e Guerra à Polícia: Reflexões Sobre a ADPF 635,
todos da excelente Editora E.D.A.
Como alertou o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux em seu discurso de posse:
“…alguns grupos de poder que não desejam arcar com as consequências de suas próprias decisões acabam por permitir a transferência voluntária e prematura de conflitos de natureza política para o Poder Judiciário, instando os juízes a plasmarem provimentos judiciais sobre temas que demandam debate em outras arenas.Essa prática tem exposto o Poder Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, a um protagonismo deletério, corroendo a credibilidade dos tribunais quando decidem questões permeadas por desacordos morais que deveriam ter sido decididas no Parlamento”.
Os
tribunais passaram a receber demandas que não envolvem interpretação
jurídica, mas apenas decisões políticas. Decisões políticas são o
domínio de políticos; o domínio dos tribunais é a aplicação das leis em
nome da justiça.
O
ativismo judicial é uma violação da autonomia e da independência dos
Poderes republicanos. Ele é parte da reação de um sistema acostumado
durante muito tempo ao poder quase absoluto. Esse sistema se recusa a
aceitar uma forma de expressão e organização política que dispense a
mediação da diminuta elite urbana.
Uma
elite que dá mais valor às opiniões de alguns servidores do Judiciário
do que aos votos de 58 milhões de pessoas e que se embriaga de
radicalismo chique, esquecendo-se de um detalhe importante: depois de
toda a embriaguez, vem a ressaca.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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