A radicalização tem ares de um velho conceito: a distinção amigo-inimigo, de Carl Schmitt. Fernando Schüler para a Veja:
“Quem vota no Bolsonaro
não é gente”, leio de um ativista, em meio ao torvelinho de ódio que
tomou conta do debate político. De outro leio que “falar em fascismo é
fichinha”, e que “corremos o risco de regredir aos tempos da
escravidão”. Ainda outro é mais direto: “Ou você vota no Lula,
ou nos nazistas”. A opinião não parece ser apenas dessas figuras. Lula
diz que as manifestações do 7 de Setembro “pareciam reunião da Ku Klux
Klan”, enquanto Bolsonaro garantia que as eleições são uma luta do “bem
contra o mal” e que é preciso “extirpar” aquele “tipo de gente”,
casualmente seus adversários, da vida pública. Não é preciso ir muito
mais longe para percebermos que passamos do ponto. A turma fica meio
biruta em época eleitoral, mas a verdade é que nosso debate público se
tornou uma caricatura. Passadas três décadas e meia da redemocratização,
transformamos nossa democracia num inútil espetáculo de argumentos
infantis misturados com ódio de gente grande.
A
atual radicalização tem os ares de um velho conceito da ciência
política: a distinção amigo-inimigo, feita por Carl Schmitt, o jurista
alemão que se filiou ao Partido Nacional-Socialista, em 1933. É o oposto
da racionalidade domesticada das democracias liberais, que resumem o
debate político a um espaço delimitado, das visões sobre o país, dos
adversários que competem pelo governo, e não pelo “poder”. Que usam da
palavra para argumentar, ajustam opiniões e têm a grandeza de entender
que o outro é apenas um adversário igualmente legítimo. É esta, em
última instância, a regra operacional da democracia liberal. A lógica
amigo-inimigo é o oposto. O outro é o “pestilento”, como li de um tipo
esquisito em um grupo de WhatsApp. É igualmente inconfiável. Ele
expressa um “risco existencial”, como virou comum se escutar de tipos
mais delirantes.
Para
Schmitt, há um problema na natureza das democracias liberais. Ele
reside justamente na sua fuga dos embates sobre os “mais altos valores”
que definem a existência de um povo. Schmitt via como um problema algo
que a tradição liberal sempre buscou como virtude. A política de baixa
intensidade, distante das questões existenciais, focada na proteção de
direitos e na definição — em geral sem a menor graça — de políticas
públicas. O curioso da atual polarização brasileira é seu aspecto
farsesco. Cada lado do jogo atribui ao oponente um risco existencial. A
oposição antibolsonarista talvez faça isso com mais requinte. O inimigo é
um risco à democracia, dado que dará um “golpe”, e inimigo da
civilização, dado que é um “genocida”. O governismo não faz diferente,
com suas teorias delirantes sobre os riscos do “globalismo” e da
“destruição dos valores” supostamente promovida pelo progressismo. A
partir daí, a guerra permanente. O exato oposto da suave ideia liberal e
sua recusa à dinâmica existencial. A noção de que é preciso preservar
espaços de despolitização nos terrenos da ética, da religião, da
estética, cujo cultivo diz respeito aos indivíduos, e nunca ao Estado.
Se
a retórica amigo-inimigo permanecesse apenas no plano dos grupos
militantes, não me preocuparia muito. O risco é quando ela invade o
universo das instituições de Estado. O terreno daqueles que detêm, na
famosa frase de Weber, o “monopólio do uso legítimo da violência”. É
diferente que alguém seja “cancelado” por uma horda de militantes
fanatizados, como aconteceu com pessoas notáveis, que vão de J.K.
Rowling ao nosso Antonio Risério, e que um órgão de Estado mande prender
ou banir da internet um cidadão que subitamente se torna uma ameaça
existencial à democracia a partir do juízo altamente subjetivo. Ambas as
atitudes são condenáveis, mas a segunda tem o sabor schmittiano: o
soberano decide o estado de exceção. E é inaceitável em uma democracia
liberal.
Dias
atrás li de um candidato que esta eleição não era uma discussão sobre
quem iria governar, mas sobre o “regime de governo”. Exemplo perfeito do
lado farsesco de nosso debate. Remete-se a um suposto conflito
existencial aquilo que é apenas uma decisão sobre alternativas de
governo, ambas devidamente limitadas pelo sistema de freios e
contrapesos. Na prática, há duas agendas em disputa, que podemos
facilmente identificar nas votações no Congresso. Coisas como o teto de
gastos, a reforma da Previdência, trabalhista, a autonomia do Banco
Central, o marco do saneamento ou a privatização da Eletrobras. Coisas
perfeitamente não existenciais, e mesmo por isso aborrecidas, e talvez
por isso distantes de nosso popularesco debate eleitoral. É evidente que
as pessoas podem eleger critérios distintos para votar. Eles podem ir
da predileção por uma política pública até a mera antipatia pessoal.
Lula falou em “serviço de mulher”? Bolsonaro disse que era
“imbrochável”? Perfeito. Mover-se por questões pueris, ou
“tribalizáveis”, como me definiu um bom amigo, é um direito das pessoas e
sempre fez parte da vida democrática. Coisa bem diferente é a lógica
tóxica da inimizade política. A ideia de que “vamos virar uma
Venezuela”, curiosamente atribuída tanto a Lula como a Bolsonaro, ou a
tese superdelirante de que viraríamos uma “Alemanha dos anos 30”.
Patética referência ao nazismo nos lembrando que qualquer razão
argumentativa perdeu o sentido e que nos aproximamos perigosamente do
fundo do poço.
Quem
se preocupa de verdade com nossa democracia deveria dar um tempo para a
retórica de fim de mundo que impera na epiderme da política, à esquerda
e à direita. A lógica que deseduca, que serve de antessala à violência,
ao baixo consenso na formulação de políticas e a perda progressiva de
qualidade no debate democrático. Quem nos deu uma bela lição sobre essas
coisas (pra variar) foi Barack Obama, naquele momento mais intenso do
debate americano, após à vitória de Trump, em 2016. Descontraído, diante
do choro e ranger de dentes de seus amigos democratas, ele assegurou
não haver nada efetivamente “letal” em jogo nas eleições. Nenhuma luta
de vida ou morte. Tudo se resumia, em última instância, a saber quem
iria governar. Quem ganha comanda o jogo, por quatro anos, e quem perde
vai para casa, esfria a cabeça e pode voltar na próxima rodada. Foi
exatamente o que aconteceu naquela grande democracia. E no Brasil
também. Sociais-democratas, socialistas e conservadores não estiveram no
poder? E não continuamos aqui, batendo boca? A cada rodada do jogo, há
frustração, de um lado, e fogos de artifício, de outro. Ao longo do
tempo, porém, todos ganham. A lição é simples, mas talvez exija algo
muito difícil: a renúncia a um tipo de grandeza que a democracia liberal
não pode oferecer. A sabedoria de aceitar o “inteiramente outro”. De
agir como o “animal doméstico”, na exata contramão de Carl Schmitt,
naquilo que diz respeito ao poder, sempre limitado, sempre transitório,
como deve ser, em uma grande democracia.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 21 de setembro de 2022, edição nº 2807
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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