Catolicismo não é desculpa para ensimesmamento. Ao contrário, é remédio. Na Gazeta do Povo, a resposta de Bruna Frascolla ao plantonista do bolsonarismo no jornal, cronista que chegou a invocar o catolicismo para absolver Bolsonaro, o santo evangélico imaculado:
Em editorial desta semana, a Gazeta do Povo anunciou já no título o elefante que está na sala: “Monark e o fim da democracia”.
O caso Monark mostrou, para além de qualquer dúvida, que não há
democracia neste país. Não que seja uma novidade. Faz algum tempo que já
é rotina o STF ou o TSE fazerem alguma coisa doida só porque podem, e
em seguida choverem opiniões de juristas apontando que a coisa doida é
doida. Mas apontam em vão, pois, se os ministros do STF não podem de
direito, podem de fato. Em maior ou menor grau, o Ocidente todo é assim,
mas o direitista médio do Brasil, exposto a muito olavismo de segunda
mão, acha que tudo é culpa do Foro de São Paulo.
Em réplica a
mim, Polzonoff disse que “ainda não estamos numa ditadura. Pelo menos
não numa ditadura declarada.” Francamente, não sei que tipo de ditadura
ele espera para estimular as pessoas a tomarem juízo – o que foi o
propósito do meu texto "A Igreja Bolsonarista dos Últimos Dias".
Nem a Coreia do Norte é uma ditadura declarada. Em tese, a “República
Popular Democrática da Coreia” é uma democracia que, ano após ano, elege
o mesmo mandatário com a quase totalidade dos votos.
Diante
do fato consumado de que estamos numa ditadura, que fazer? Vou dizer o
que eu não faria: uma lista de pessoas dispostas a apoiar Bolsonaro
financeiramente. As mesmas pessoas que juram que os bolsonaristas estão
para Xandão como os judeus estão para Hitler, e que garantem que
Bolsonaro nada poderia fazer porque o Estado está tomado, deram, com a
campanha do pix, uma espécie de Lista de Schindler ao contrário. Vejam
bem: a menos que haja um pendor suicida na equação, só posso concluir
que os devotos bolsonaristas não levam a sério o que eles próprios
dizem, ou têm sérias deficiências de raciocínio. E é possível que se
trate das três coisas ao mesmo tempo, já que um histriônico pode não dar
valor à própria vida enquanto faz as suas performances afetadas.
Dificilmente
uma seita vai ser grande o bastante para ter um milhão de membros (que
parece ter sido a quantidade de doadores da vaquinha). Nos comentários
do meu texto, houve leitores que diziam ter doado como uma expressão de
gratidão pelo trato na pandemia. É provável que esses leitores não
digam, nem da boca pra fora, que são como judeus na Alemanha nazista.
Mas provavelmente creem na teoria da “cereja do bolo”, segundo a qual
Bolsonaro é um pobre coitado que não poderia ter feito muito mais na
presidência.
Entre
os comentários, porém, houve também quem expressasse um sentimento
idêntico ao meu: o fato de ter votado em Bolsonaro me autoriza mais
ainda a criticar o exercício do mandato. Não fazia o menor sentido a
mídia woke criticar Bolsonaro pelo decreto de armas, que foi uma
promessa de campanha. Mas faz todo o sentido do mundo quem votou nele
criticá-lo por ter se revelado um bravateiro incompatível com as
promessas eleitorais. Ele dizia que ia fazer e acontecer; agora posa de
pobre coitado. O povo lhe deu a faca e o queijo. Bolsonaro não os usou, e
agora quer que o povo resolva até os seus problemas financeiros.
Mas
vamos à gestão da pandemia. Embora Bolsonaro fosse sem dúvida melhor
que o STF, como a tirania sanitária poderia ser exercida sem o Conecte
SUS? A ampla digitalização dos documentos dos cidadãos ocorreu no governo Bolsonaro.
A cantilena liberal vai atrelar a digitalização à desburocratização,
mas definitivamente não é uma boa ideia deixar dados de saúde sensíveis
nas mãos de um sistema nacional suscetível a vazamentos e hackers. Não
podemos deixar a Petrobrás na mão do Estado porque o PT pode se eleger,
mas é uma boa ideia deixar os dados de saúde nas mãos do PT? De nada
adianta bradar contra o globalismo do Foro de São Paulo quando se fecham
os olhos para as ações do governo Bolsonaro – e digo “governo
Bolsonaro” em vez de “Bolsonaro” levando em conta que ele nunca se
responsabiliza por nada, nem sequer pela própria vaquinha.
Estamos,
pois, numa ditadura não declarada, como soem ser as ditaduras modernas.
Qual foi o passo decisivo para o estabelecimento desse estado de
coisas, em que o poder se centra num ministro do Supremo? Isso está
aberto à discussão; e, se houver historiadores no futuro, certamente o
Inquérito das Fake News, iniciado em 14 de março de 2019, será um marco
importante. Mas o fato é que a imprensa inflou muito a crença num outro
tipo de ditadura: a ditadura populista, na qual um líder de massas
carismático comanda um Executivo irrestrito. O único precedente disso no
Brasil foi o Estado Novo. Sim, Getúlio Vargas era um anti-liberal, e
Bolsonaro, desde 2018, era liberal. Goste-se ou não, ambos foram (e
excluo Lula) os maiores líderes de manifestações de massas no Brasil.
Bolsonaro certamente foi o maior em números absolutos; levando-se de
conta a proporcionalidade, não sei quem foi o maior. Já lancei uma hipótese para explicar por que as massas amaram dois líderes tão diferentes.
Até
7 de setembro de 2021, pois, o Brasil vivia entre dois espectros de
ditadura: uma populista, muito falada por apoiadores e detratores, e uma
judiciária, chamada por seus apoiadores de “instituições democráticas” e
de “globalismo” por seus detratores. O dia 7 de setembro foi a apoteose
dessa primeira ameaça. Por meio de demonstrações de forças de ambos os
lados, talvez o Brasil pudesse se equilibrar numa democracia precária e
estrambólica. Mas não: no dia 9, Bolsonaro anunciou quem manda, e quem
manda é o Supremo Xandão. Entre o 7 de setembro de 21 e o 8 de janeiro
de 22, o único grupo com poder que ousou contrariar o STF foram as
Forças Armadas, cujos comandantes emitiram uma nota afirmando a
legalidade das manifestações. Depois da estranhíssima invasão às sedes
dos Três Poderes, as Forças Armadas entregaram o abacaxi (isto é, os
manifestantes) para o STF, reconhecendo-lhes a autoridade suprema. Mas
tiveram mais coragem que Bolsonaro. E as manifestações das frentes dos
quartéis poderiam ter minguado se Bolsonaro lhes garantisse que não
haveria nenhuma reviravolta. As manifestações evoluíram para uma psicose
coletiva da qual jamais participei, e que denunciei em janeiro deste ano.
É
cretina toda comparação entre “judeus” e bolsonaristas pelo simples
fato de que ser bolsonarista é uma questão de escolha; ser “judeu” na
Alemanha nazista, não. Para os nazistas, era judeu quem tinha ancestrais
judeus. Ninguém escolhe ancestralidade. Edith Stein virou freira; os
nazistas buscaram no convento e levaram pra câmara de gás. Karl Popper
foi criado como luterano, mas se não conseguisse fugir, seu destino
seria o mesmo. A família Wittgenstein, mestiça e protestante, também
teve que ir embora por ser considerada judaica. O grupo de vítimas da
Alemanha nazista que pode ser considerado similar aos bolsonaristas é o
dos comunistas, pois comunista escolhe ser comunista, e essa escolha
punha-os direto na mira do Reich.
Mas
um comunista alemão sabia quais riscos corria quando escolhia ser
comunista e cerrar fileiras contra o nazismo na Alemanha (a despeito do
pacto Molotov-Ribbentrop). Não à toa, eram precavidos e cheios de
segredos. Já os devotos do bolsonarismo parecem se ver predestinados ao
martírio. É como se não enxergassem a própria liberdade. Creio que isso
se deva a influência neopentecostal, já que crentes romantizam o povo
judeu e, ao mesmo tempo, creem na predestinação. Nesse cenário, faz
sentido você querer ser o judeu da Alemanha nazista (sem entender o que
era isso) e torcer para aparecer um campo de extermínio logo na sua
frente. Certeza garantida de salvação. Salvação individual. O Brasil que
se dane.
Se
fosse apenas a própria pele, a martirizada, menos mal. O pior de tudo é
a turma que arrisca o pescoço alheio para faturar views e pedir pix.
Vide o caso de Guilherme Fiuza, que teve o infortúnio de cair no gosto
das seitas bolsonaristas. Suas falas veementes e corajosas – mais
veementes e corajosas do que as do próprio Bolsonaro quando presidente –
puderam ser cortadas, editadas e postadas fora de contexto um milhão de
vezes por perfis e canais de “apoio” ao jornalista. Depois, quem sofre
assédio judicial não é nenhum desses bonitos donos de página, é o
próprio Fiuza, que deu a cara a tapa. Do mesmo jeito, os sectários
exigem o tempo inteiro que a imprensa "diga verdades" sem se preocupar
nem um pouco com a segurança dos jornalistas e colunistas. Agora é tempo
de driblar censura com inteligência, e não de dar shows de histeria que
levam direto para a cadeia.
Polzonoff
não quis entender nada ao olhar para o sensacionalismo dos
bolsonaristas. O autoexame só é uma virtude se não se reduzir a um
ensimesmamento. Escrevo sobre os outros, em vez de escrever sobre mim
mesma, porque julgo que os outros estão interessados na sociedade, e não
na minha pessoa. Ensimesmamento é só uma forma de narcisismo às
avessas.
Acho
que a caixa de comentários de Polzonoff mostra o quão errado ele
entendeu as coisas. Tal como na minha, há um monte de gente me chamando
de Reinaldo Azevedo. Então faço aqui um “exame de consciência” público
para dizer que me orgulho das minhas posições sobre os temas mais
sensíveis que ainda podem ser discutidos publicamente sem risco de
prisão. Em agosto de 2020,
quando ainda nem tinha “vacina” para nos empurrarem, eu já apontava
para as especulações pouco condizentes com os conhecimentos científicos
básicos alardeadas pelos famigerados divulgadores; em julho de 2021,
eu alertava para a propaganda bancada pela grande mídia e pelas Big
Techs, que mandava as mulheres tomarem “vacina” mesmo grávidas, a
despeito da exígua pesquisa sobre a segurança. Apoiei a presidência de
Bolsonaro enquanto era preciso escolher entre Bolsonaro e os bonitinhos
ungidos pela Faria Lima (Lula e “terceira via” inclusos). Desde o começo
do governo, detestei a arrogância sectária dos que atribuíam a Olavo a
vitória de Bolsonaro e pareciam achar que cada voto contra o PT era um
voto que endossava o “Mestre” – quando a realidade é que muito eleitor
de Bolsonaro tomou ciência da existência de Olavo na live de Bolsonaro
após o resultado eleitoral.
Desde
a “vacinação” compulsória e da publicidade da Agenda ESG, mudei a minha
visão do mundo e dos fatos. Antes eu achava que o identitarismo era um
problema de intelectual. (O racismo negro me preocupa desde antes de eu
entrar na faculdade.) Depois de ver que é tudo vendido junto – vacina e
“politicamente correto” --, concluí que o mal do nosso tempo é a
usurpação dos Estados nacionais por forças econômicas transnacionais
muito mais ricas que ele. Trocando em miúdos, a Pfizer pode comprar
quantas agências reguladoras quiser, sem que possamos remediar o
problema no voto. As agências reguladoras foram privatizadas à revelia
da lei. O Estado não é a origem do problema; é uma ferramenta
indispensável para a solução, e que portanto precisa ser recuperada.
Outra mudança de pensamento minha é que certos direitos devem deixar de
ser prioridade, pois são instrumentalizados contra a integridade física
de crianças.
Pronto:
aqui está, de modo resumido, a minha trajetória, da qual me orgulho.
Não que eu tenha essa importância toda para ficar detalhando os meus
pensamentos, mas também não vou ficar sentada sendo acusada de
farisaísmo.
Por
outro lado, eu não reivindico nenhuma identidade coletiva que venha
acompanhada de um pensamento específico. Agora, se eu reivindicasse a
identidade católica, eu me sentiria obrigada a estudar a Doutrina Social
da Igreja antes de repetir as lamúrias tão piegas da ideologia
libertária ou anarcocapitalista. Catolicismo não é desculpa para
ensimesmamento. Ao contrário, é remédio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário