Relegado à solidão por não transigir com a esquerda, o autor de "Casa grande & Senzala" continua assombrando até aqueles que o odeiam. Josias Teófilo para a revista Crusoé:
Na
última edição do Premio Jabuti, que aconteceu no Theatro Municipal de
São Paulo no ano passado, o grande alvo, citado diversas vezes por
aqueles que tiveram a palavra no evento, foi a chamada democracia
racial. A ideia que, segundo eles, diz respeito a uma suposta igualdade
entre raças e é atribuída a Gilberto Freyre.
No
mesmo evento, porém, a oposição retórica entre casa grande e senzala
foi usada diversas vezes. De novo, uma referência que no final das
contas é a Gilberto Freyre — mas eles não devem ter lembrado desse
detalhe.
Primeiro
de tudo: o termo democracia racial, usado poucas vezes na obra de
Freyre, não é uma negação da existência do racismo no Brasil nem a
afirmação de uma igualdade entre as raças no país. O termo democracia
racial se refere à contribuição que o branco, o negro e o índio deram à
cultura brasileira. Na verdade, Freyre, já em Casa Grande & Senzala,
expõe toda a brutalidade da escravidão sem minimizá-la ou
relativizá-la.
Como
escreveu Bruna Frascolla, Gilberto Freyre se opunha ao racismo quando o
racismo era considerado científico e era respeitado.
A
ideia da democracia racial, que hoje incomoda tanto a esquerda, já teve
tempos melhores. Valéria Costa e Silva, no livro A Modernidade nos
Trópicos – Gilberto Freyre e os Debates em Torno do Nacional, aponta
referências mais ou menos explícitas à democracia racial tanto no
discurso de posse de Gilberto Gil como ministro da Cultura, em 2003,
como em textos de Jorge Caldeira, o que ela entende como a insistência
do fantasma de Gilberto Freyre em assombrar o Brasil. O evento do Jabuti
confirma essa interpretação.
Gilberto
de Mello Freyre nasceu no Recife em 1900. O ano redondo facilita
memorizar a cronologia de sua vida. Morreu em 1987, também no Recife.
Freyre
foi considerado o netinho retardado da avó, por sua dificuldade em
aprender a ler e escrever. Foi alfabetizado em inglês. Terminou
escrevendo setenta e cinco livros, traduzidos para diversas línguas ao
redor do mundo.
O
que chama atenção em Gilberto Freyre é a sua presença decisiva em
momentos-chave da política. Durante a Revolução de 1930, Freyre teve um
companheiro morto ao seu lado por um tiro que era destinado a ele. A
casa de sua família foi saqueada e incendiada. Foi uma grande perda
material: lá se foram joias, fotografias coloridas (uma raridade na
época), pinturas, livros raros. Ele precisou se exilar na Europa, onde
chegou até a passar fome, por causa da perseguição política.
Por
muito tempo, Lampião ficou sem pisar em Pernambuco. O motivo: uma lei
assinada por Freyre, então chefe de gabinete do governador Estácio
Coimbra, que perseguia os coiteiros, fornecedores de armas e munições
aos cangaceiros.
Antes
de Getúlio Vargas suicidar-se, ele tinha se comunicado com Freyre:
queria fazer uma ampla reforma agrária no Brasil. Quando a rainha
Elizabeth 2ªI esteve no Recife, lá estava Gilberto Freyre para
recêbe-la. Anos depois ele receberia o título de cavaleiro do Império
Britânico.
Freyre
esteve entre os primeiros autores brasileiros a citar Freud, Proust,
Joyce. Introduziu no Brasil os livros que são guias de viagens. O
primeiro que escreveu foi Guia Histórico e Sentimental do Recife,
editado até hoje.
A
grande contribuição de Gilberto Freyre ao pensamento brasileiro foram
os livros Casa Grande & Senzala, Sobrados & Mucambos e Ordem
& Progresso, que formam a História da Sociedade Patriarcal no
Brasil, cobrindo desde a colonização até a República. A estes três
volumes seria acrescentado um quarto, Jazigos & Covas Rasas, que ele
não teve tempo de terminar e publicar. O livro refletiria uma visão
social e arquitetônica dos ritos funerais desde a época do império.
Quando
Gilberto Freyre fez 70 anos, Nelson Rodrigues escreveu um longo artigo
em que dizia que a obra do pernambucano tinha “o movimento, a
profundidade, a variedade do romance tolstoiano”, em referência a Guerra
e Paz. E reclamava da formidável solidão a que Freyre foi renegado por
não transigir com a esquerda. Com efeito, o próprio Gilberto reclamou,
na famosa entrevista à Playboy, do boicote da imprensa ao seu nome,
especialmente da Veja, na época dirigida por Mino Carta. Já naquela
época a esquerda vinha conseguindo cada vez mais calar as vozes
divergentes, um processo que não parou até hoje. Mas a obra de Freyre
sobrevive a isso, assombrando até os que o odeiam.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
Nenhum comentário:
Postar um comentário