Na verdade, a expressão designa guerra de propaganda pura e simples; arte e cultura passam ao largo, apesar de serem usadas como instrumento. Josias Teófilo para a Crusoé:
Setores
da direita têm cobrado o governador Tarcísio de Freitas para que atue
na chamada guerra cultural. Ricardo Salles, ex-ministro de Jair
Bolsonaro, cobrou especificamente isso do governador: “É muito mais
fácil fazer estrada que combater a esquerda. Os ministérios ideológicos,
Justiça, Educação, Cultura. É ali que a briga ideológica acontece”,
afirmou Salles em reunião do PL no começo do mês de julho.
O
termo “guerra cultural” foi amplamente difundido nos Estados Unidos na
década de 1990, a partir do livro de James Davison Hunter. No Brasil,
ele se difundiu especialmente a partir de junho de 2013, em termos muito
próximos da guerra cultural norte-americana descrita por Hunter — em
opiniões que se dividem em duas polaridades distintas, em temas como
aborto, legislação sobre armas, uso de drogas, homossexualidade etc.
Durante
o governo Bolsonaro, a guerra cultural esteve em pauta diariamente,
seja na atuação do presidente, seja na dos ministros ou da militância,
tendo como palco especialmente as redes sociais.
Primeiro
de tudo, é preciso que se diga: guerra cultural não tem nada de
propriamente cultural. Na prática, guerra cultural é guerra de
propaganda pura e simples. Arte e cultura passam ao largo, apesar de
serem usadas como instrumento.
Assim,
a guerra cultural bolsonarista não resultou em nenhuma obra cultural ou
artística, mesmo dispondo do orçamento do governo federal, da gestão
das leis de incentivo e tendo ao seu lado uma boa parcela do
empresariado. Só com este último, o governo poderia ter incentivado uma
grande quantidade de obras musicais, cinematográficas, teatrais e até
arquitetônicas — mas não o fez. Com isso, poderia ter feito a diferença
contra a hegemonia da esquerda na cultura.
Preferiu
os embates em rede social. O problema é que esses embates, apesar de
terem no curto prazo o efeito de agregar a militância, constantemente
tem o efeito oposto no âmbito da cultura. Por exemplo: o boicote ao
filme Marighella feito por uma parcela da direita só favoreceu o filme.
Não é à toa que a Igreja Católica parou (já há décadas) de proibir filmes — porque isso os promovia.
A
longo prazo, a guerra cultural provoca um esgotamento dos envolvidos. É
que reclamar adianta pouco ou nada. O escândalo promoveu muitos
artistas e muitas obras, e é até hoje um mecanismo usado pelo marketing.
A
única forma possível de atuação na cultura — mesmo que tenha por
objetivo um efeito político — é através da ação positiva, de incentivo,
criação e resgate de obras de valor. Os efeitos podem não ser imediatos,
mas são duradouros.
Temos
bons exemplos na nossa história: o incentivo às artes que aconteceu no
Segundo Reinado — inclusive com Pedro 2º pagando do próprio bolso os
estudos do compositor Carlos Gomes na Europa —, com o claro objetivo da
procura da identidade nacional, dá frutos até hoje.
Os
efeitos do Movimento Regionalista — encabeçado por Gilberto Freyre,
então um jovem de 26 anos — repercutiram formando toda uma identidade
regional nordestina que foi a base da literatura de grandes escritores,
tais como José Lins do Rego, Ariano Suassuna etc. Para a escultura de
Aberlado da Hora e Francisco Brennand. Para a Orquestra Armorial e a
música de Guerra-Peixe e Clóvis Pereira. O Auto da Compadecida, um dos
filmes mais queridos do cinema nacional, é talvez a obra mais conhecida
desse movimento.
Também
Gustavo Capanema, ministro de Getúlio Vargas, deixou um legado na
cultura que transcendeu gerações e mesmo a ideologia do governo do qual
participou. Capanema tinha sua constelação de gênios — Villa-Lobos,
Portinari, Drummond —, que formou a mais brilhante geração de artistas
da história do Brasil.
Até
os governos militares tiveram uma importante atuação na cultura,
criando a Embrafilme. Os filmes produzidos lá repercutiram
internacionalmente, tiveram milhões de espectadores nos cinemas. O
público proporcional do cinema brasileiro nunca foi tão alto: se hoje os
filmes brasileiros ocupam 1% das salas, naquela época ocupavam 10%.
A
guerra cultural, apesar de não ter efeitos culturais, pode beneficiar
os agentes imediatamente com curtidas, votos ou dinheiro, mas degrada o
ambiente como um todo.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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