BLOG ORLANDO TAMBOSI
Em uma sociedade que enxerga o trabalho como castigo, “serviço” é mesmo uma palavra ofensiva: o cidadão entra em um prédio qualquer, dá de cara com a placa “elevador de serviço” e já se sente agredido. Luciano Trigo para a Gazeta do Povo:
O
Rio de Janeiro está sempre na vanguarda dos acontecimentos. Nestes dias
fiquei sabendo, graças ao Polzonoff, que a Prefeitura da Cidade
Maravilhosa sancionou uma lei que proíbe o uso das expressões “elevador
social” e “elevador de serviço” em todos os prédios do município, com o
argumento de que são preconceituosas e discriminatórias.
O
descumprimento da medida provocará advertência e, em caso de
reincidência, pagamento de multa de R$ 5 mil, a ser aplicada pelos
fiscais da linguagem – aliás, uma profissão em alta na nova democracia.
É
realmente uma lei sensacional, tudo de que o Rio de Janeiro precisava.
Um exemplo, a ser seguido em todo o país, de como gastar bem o dinheiro
do contribuinte. Porque foi para resolver problemas dessa gravidade que o
carioca elegeu seus representantes. Agora vai.
Só
um chato argumentaria que em muitas estações de metrô e prédios
públicos da cidade, incluindo hospitais, os elevadores frequentemente
não funcionam. O importante é que, nesses casos, ninguém sofre
segregação, já que todo o mundo é democraticamente obrigado a usar a
escada.
Coitado
do elevador de serviço. Estava trabalhando de boa, como sempre fez, e
agora amanheceu sem nome. Percebam: ele continua lá, no mesmo lugar, só
que agora anônimo, sem identidade. Cabisbaixo, o elevador de serviço
agora se preocupa até com o risco de ser processado e preso, por uso de
linguagem de ódio no próprio nome.
O
elevador de serviço é o cancelado da vez. Como o amor venceu, já devem
estar vasculhando as suas redes sociais para saber em quem ele votou, ou
se em algum momento duvidou da eficácia das vacinas, ou da
transparência das urnas eletrônicas. Se acharem algum tweet incriminador
na conta @elevadordeserviço, periga ele ser arrolado no inquérito das
fake news.
O
cancelamento do elevador de serviço é apenas mais um exemplo de que,
nos estranhos tempos em que viemos, o que importa é a linguagem, não a
realidade. Por extensão, não interessa se uma medida é racional ou
eficaz, o que importa é se ela serve a uma narrativa ou se é útil a uma
determinada agenda.
Pensando
bem, faz até sentido: em uma sociedade que enxerga o trabalho como
castigo, “serviço” é mesmo uma palavra ofensiva. Imagine a cena: o
cidadão entra em um prédio qualquer, dá de cara com a placa “elevador de
serviço” e já se sente agredido. Ele foi violado em sua sensibilidade
woke.
Isso
tinha mesmo que acabar. É evidente que cabe ao Estado proteger esse
cidadão da exposição a expressões fascistas como "elevador de serviço".
Afinal de contas, ele aprendeu que trabalhar é ser explorado, e que o
certo é viver de mesada, dos pais ou do governo (ou seja, com o dinheiro
dos pagadores de impostos).
O
fato é que, historicamente, criamos uma aversão estrutural à ética do
trabalho que vigora nas sociedades protestantes – e que explica o êxito
do capitalismo nessas sociedades, como demonstrou Max Weber em seu
clássico ensaio sobre o tema.
Já
em um país onde “meritocracia” virou palavrão e no qual se prefere
conseguir as coisas com base no jeitinho, não existe uma ética fundada
no culto ao trabalho, muito menos na valorização do esforço individual;
ao contrário: nas salas de aula se ensina desde cedo que o capitalismo é
sinônimo de opressão.
Não
se infunde nas pessoas o orgulho do trabalho bem feito, nem a vontade
de ascender com base no próprio esforço. Nem se ensina mais, como
antigamente, que todo trabalho é digno, ao contrário: o sujeito que
trabalha aprende desde cedo a se sentir inferior (e a odiar o patrão).
Nessa cartilha, usar uniforme, por exemplo, virou motivo de vergonha.
No Brasil, muito frequentemente, trabalha-se a contragosto, e com o sentimento de estar sendo vítima de uma injustiça social.
Ora,
em um país assim, é natural e desejável que seja mal vista qualquer
coisa que remeta a serviço – até mesmo o pobre do elevador. É por isso
que certa militância deve estar comemorando: o elevador é meu amigo,
mexeu com ele mexeu comigo.
No
fundo, o elevador de serviço deveria estar feliz, porque ficou livre do
sobrenome humilhante e depreciativo: “de Serviço”. Mas ele se sente
triste, porque vem de um tempo em que serviço não era sinônimo de
constrangimento e humilhação. Que horror, elevador. Você precisa ser
reeducado para se adequar aos novos tempos.
De
que forma, exatamente, proibir o uso do termo "elevador de serviço”
contribuirá para combater algum preconceito é algo difícil de
compreender.
Ou
o sujeito preconceituoso subitamente deixará de sê-lo porque o uso de
uma determinada expressão foi proibida? Ou o morador que trata mal os
funcionários do prédio deixará de fazê-lo porque o elevador mudou de
nome?
Em todo caso, a medida levanta alguns problemas práticos.
Uma
mudança, por exemplo. Ela poderá ser feita nos dois elevadores,
indiscriminadamente? E o material de construção e o entulho, em caso de
obra em algum apartamento? Vai ficar todo mundo empoeirado?
Há
prédios que só permitem animais no elevador de serviço. E agora? Os
pets vão poder usar os dois elevadores? Se forem barrados e morderem
quem barrou, poderão alegar legítima defesa?
E
os carrinhos de supermercado? E as malas de quem está indo viajar? E o
morador que chega da praia, todo molhado, sem camisa e com os pés cheios
de areia?
E
o lixo? Vai poder descer e subir no mesmo elevador que leva crianças
que vão para a escola e adultos que vão trabalhar? A ideia é fazer todo
mundo já começar o dia malcheiroso?
E
o entregador de pizza com aquelas mochilas gigantes? A ideia é deixar o
cheiro de mozzarella impregnado na roupa de quem está saindo todo
arrumado para uma festa?
E
os síndicos, porteiros e zeladores? Eles serão orientados a zelar pela
indiferenciação entre o elevador social e o elevador agora sem nome?
Imaginem a confusão, os litígios, as ameaças de processos, os surtos de
lacração, as reuniões para mudar a convenção do prédio, as brigas entre
condôminos...
Ou
será que, no final do dia, a lei não mudará rigorosamente nada – além
de censurar a expressão “elevador de serviço”? Algo parecido, aliás,
aconteceu com uma lei similar sancionada em 1996 pelo prefeito guerreiro
do povo brasileiro Paulo Maluf, em São Paulo – lei até hoje solenemente
ignorada, já que os elevadores continuam sendo usados como sempre
foram.
Bom,
a censura está na moda, não é? Muita coisa a gente já não pode falar
nem escrever mesmo. “Elevador de serviço” não será a pior nem a mais
difícil de evitar.
Uma
leitora da Gazeta, aliás, já deu uma sugestão para a próxima medida dos
governantes preocupados em reformar a linguagem: proibir o uso das
expressões “primeira classe” e “clase econômica” nos aviões, que ferem a
sensibilidade dos passageiros preocupados com a justiça social. Não
duvido que algum deputado leve a sugestão a sério. Mesmo que ele só
viaje na primeira classe.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
Nenhum comentário:
Postar um comentário