BLOG ORLANDO TAMBOSI
Em política, a negação radical não é bem-vinda. A fuga pura e simples – a admissão da derrota, por mais insuportável que seja – deve ser a regra. Mas foi o desmaio que Trump escolheu quando perdeu. Texto do professor Paulo Tunhas, publicado pelo Observador:
Aparentemente,
haverá vitória republicana na Câmara dos Representantes. No Senado,
ainda não se sabe. Pode continuar tudo na mesma, com republicanos e
democratas empatados e Kamala Harris a desempatar a favor dos
democratas. Não procurei seguir a lista enorme de outras coisas em que
os americanos votaram nestas eleições. Mas sei que muitos republicanos
estão frustrados por a anunciada “onda vermelha” não se ter verificado.
E, naturalmente, o sentimento dominante entre os democratas é o de
alívio. Ouvi mesmo um deles, na CNN americana, declarar que o sentimento
mais poderoso não é a felicidade: é o alívio. Por acaso, tendo, em
geral, a concordar.
De
qualquer maneira, pesava sobre estas eleições o fantasma do mais
célebre morto-vivo da história recente, Donald Trump, e não parece que a
sua presença tenha sido particularmente favorável aos republicanos, que
têm agora uma nova estrela, Ron DeSantis. E, convenhamos, depois da
farsa grotesca – é, creio, a expressão que convém – do ataque ao
Capitólio, numa versão peplum das lutas entre populares e optimates no
fim da República Romana, dificilmente se poderia passar de modo
diferente. Com efeito, não tenho memória de um tão gigantesco suicídio
político, feito quase a pedido dos democratas. O historiador e
classicista Victor Davis Hanson escreveu há uns anos um livro (The Case
for Trump) onde analisava aquilo que, até 2018, fora bom – e houve
coisas boas – e mau na presidência de Trump. Acabava, interessantemente,
recorrendo à figura do western. E imaginava que Trump poderia acabar
como aqueles heróis que, depois de terem feito o necessário para pôr
ordem na terrinha, são despachados para outro lado qualquer. O que ele
não imaginava (nem eu) é que a coisa se pudesse passar como se passou.
Como se, no final do filme, John Wayne começasse a disparar em todas as
direcções. Ou, na obra-prima de Ford, O homem que matou Liberty Valance,
tivesse assassinado Jimmy Stewart.
À
sua maneira, isto mostra até que ponto a democracia é artificial, no
sentido de ser uma construção humana que vai contra muitos dos nossos
instintos mais primitivos. Reconhecer uma derrota é tudo menos natural,
sobretudo em eleições, como as americanas, que exigem dos concorrentes
um investimento psíquico tão formidável que nos é difícil imaginá-lo. A
quantidade de mecanismos mentais mobilizados para perseverar na campanha
não se conta. As doses de auto-ilusão consumidas no processo são
praticamente infinitas. O choque bruto da derrota – o confronto com um
Não-Eu que limita decisivamente o Eu, para falar filosoficamente – é
tudo menos facilmente assimilável. Já o é para políticos que se formaram
e cresceram no interior dos partidos, onde, apesar de tudo, adquiriram,
de múltiplas maneiras, a experiência de conviver com derrotas dentro
desses mesmos partidos (lembrem-se de Hillary Clinton). Agora imaginem
como o será para alguém – é, claramente, o caso de Trump – que, pura e
simplesmente, tomou conta de um partido a partir do exterior. A
dificuldade em aceitar uma derrota pode atingir proporções cósmicas: ela
é, literalmente, inconcebível. O fortíssimo investimento psíquico não
admite tão colossal decepção.
A
filosofia, desde há muito, estabeleceu uma analogia entre, por um lado,
afirmação e negação, e, por outro, perseguição e fuga. Encontramo-la em
autores tão diversos como Aristóteles e Descartes. E Hobbes associava a
negação a uma “vontade de omitir”. No caso das eleições, os vencedores –
aqueles que se afirmam – figuram os predadores e os derrotados –
aqueles que negam – a presa. É a negação que é verdadeiramente
interessante. Porque ela pode dar-se de, pelo menos, duas maneiras. Como
pura e simples fuga, e isso corresponde, eleitoralmente, à admissão da
derrota. Mas a negação pode ser mais radical.
Foi
essa concepção radical da negação que Sartre desenvolveu numa sua obra
de juventude, o Esboço de uma teoria das emoções. O exemplo que ele dá é
o do desmaio por medo. Ignoro se a teoria de Sartre é verdadeira, mas é
tão boa que merecia sê-lo. O que faz, ao fim e ao cabo, quem assim
desmaia? Nega a existência do objecto que o ameaça. O objecto, como por
milagre, desaparece da consciência, e, de um certo modo, deixa de
existir. Imaginem que estão na vossa sala a ver televisão e, de repente,
vos entra por ela dentro um tigre siberiano. Admito que haja pessoas de
valor extraordinário que, qual Tarzan, avancem para o animal para um
heróico combate corpo-a-corpo. Por mim, e sem ter qualquer prazer em me
diminuir através desta confissão, o mais possível era que desmaiasse.
Seria muito mais fácil: o tigre deixaria de existir na minha
consciência, que o negaria por inteiro. É claro que ele me esfacelaria à
mesma, mas a minha consciência estaria, por assim dizer, segura.
É
um tipo de segurança que não convém à política. Em política, a negação
radical não é bem-vinda. A fuga pura e simples – a admissão da derrota,
por mais insuportável que seja – deve ser a regra. Mas foi o desmaio que
Trump escolheu, para sua desgraça, quando perdeu as eleições para
Biden. E, aparentemente, continua desmaiado, em intensa actividade
onírica. Segundo todas as aparências, Ron DeSantis não se inclina para a
negação radical. Tanto melhor para ele e para os republicanos. É mais
normal.
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