Ou
dá a impressão de não entender: tentar aparentar isenção e pedir
negociações de paz genéricas não ajuda em nada a resolver o conflito. Vilma Gryzinski:
O
papa Francisco é um homem de fé e de paz, com conhecidas preferências
políticas provindas de sua experiência de vida na Argentina. Mas também
usa uma linguagem dúbia quando fala da Ucrânia, dando a entender que a
culpa deve ser igualmente dividida, com o acréscimo dos capitalistas
malvados – “A Otan foi latir no quintal” de Putin, já disse,
absurdamente.
Distribuir
a culpa entre todos os envolvidos na guerra, que é da inteira e abjeta
responsabilidade de Vladimir Putin, não dá ao Vaticano um papel em
eventuais negociações e não traz a clareza moral que os fiéis da Igreja
merecem ouvir.
Ao
pedir “negociações sérias” para terminar a guerra, como fez na viagem
ao Barein na semana passada, ele oferece ao Kremlin a chance de se
passar por um interlocutor razoável. Seu secretário de Estado, portanto o
número dois, Pietro Parolin, chegou a dizer que viu “pequenos sinais”
positivos provenientes de Moscou, como a reabertura para as exportações
de cereais.
Cinicamente,
o porta-voz de Putin, Dimitri Peskov, declarou que a Rússia se dispunha
a “discutir” as questões levantadas num apelo de Emmanuel Macron, em
visita ao Vaticano, para a intervenção papal junto a Putin, ao
presidente Joe Biden e ao patriarca Kirill, da Igreja Ortodoxa Russa, um
dos maiores defensores da guerra,
É
perfeitamente possível entender que, no discurso no Barein, Francisco
estava se referindo a Putin quando disse que “enquanto a maior parte da
população mundial está unida pelas mesmas dificuldades, afligida por
graves crises alimentares, ecológicas e pandêmicas, alguns poderosos se
concentram em uma luta decidida por interesses particulares,
desenterrando linguagens obsoletas, redefinindo zonas de influência e
blocos contrapostos”.
Se
é assim, como negociar com os tais “poderosos”? Fazendo concessões a
eles? Entregando uma parte do país conquistada pela força?
A
posição da Ucrânia é cristalina: não existe negociação possível depois
que a Rússia simplesmente anexou os territórios que ocupa atualmente
(sem falar na Crimeia, anexada em 2014).
Em
algum momento, no entanto, haverá negociações, visto que a Ucrânia não
pode vencer uma guerra contra uma potência nuclear que deixou de ter
qualquer pudor em falar no uso de armas atômicas. Segundo o Washington
Post, o governo americano já está fazendo pressões nos bastidores para
que a Ucrânia seja mais flexível.
Mas
o reconhecimento de que o país trava uma guerra justa, seja pelas
definições de São Tomás de Aquino, seja pelo direito à legítima defesa
apoiado pela ONU, é um requisito fundamental para qualquer dos atores
envolvidos numa negociação futura.
A
ambiguidade do papa – e não somente em relação à guerra na Ucrânia –
ficou patente numa entrevista extremamente infeliz que deu em junho a
uma revista jesuíta. Portanto, à sua turma.
“É
preciso se distanciar do padrão de que Chapeuzinho Vermelho era boa e o
lobo era mau”, disse o homem que deveria saber mais do que ninguém
sobre as lupinas maldades que rondam o mundo. Sobre a Otan – em cuja
órbita os países da antiga esfera russa suplicaram de joelhos ser
admitidos, como proteção preventiva contra Moscou –, o papa afirmou: “É
preciso que entendam que os russos são imperiais e não permitem que uma
potência estrangeira se aproxime”.
Existe justificativa mais mascarada para a agressão de Putin?
“Qualquer
um que ache que a Rússia foi provocada a desfechar a agressão militar
por alguma causa externa está se deixando enganar pela propaganda russa
ou deliberadamente enganando o mundo”, respondeu o arcebispo Sviatoslav
Shevchuk, da pequena minoria católica da Ucrânia, que segue o elaborado
rito bizantino.
As
simpatias políticas do papa são conhecidas: ele raramente, se é que o
faz, critica regimes de esquerda. Ao contrário, tem resistido a defender
abertamente a Igreja nicaraguense, perseguida em inúmeras instâncias
pelo regime de Daniel Ortega. Exilados cubanos chegaram a ser tirados da
Praça de São Pedro, para atender a um arbitrário limite de 50 pessoas
no máximo. “Peça perdão a Cristo”, dizia uma música feita em protesto.
A mensagem que ele mandou à véspera da eleição brasileira não poderia ser mais clara sobre o lado que apoiava.
Curiosamente,
a posição crítica em relação à Ucrânia do “papa peronista”, como já foi
chamado, é espelhada por seu maior opositor à direita da direita, o
arcebispo rebelde Carlo Maria Viganò. O ex-núncio nos Estados Unidos
assumiu inteiramente a teoria da conspiração de uma elite globalista que
“incitou” a Rússia e de Putin como defensor dos valores cristãos. E tem
mais: são “bilionários de quipá que estão vendendo a Ucrânia para o
corruptor e corrompido Ocidente”. Ou seja, o arcebispo virou adepto das
maluquices mais entranhadas do antissemitismo.
O
papa e autoridades católicas renegadas têm influência quase zero na
Ucrânia, mas o componente religioso da guerra é importante. O patriarca
Kirill jogou todo o peso da Igreja Ortodoxa Russa do lado de Putin,
convocando a população para uma verdadeira guerra santa, um confronto
entre o Bem e o Mal, este representando pelas paradas gay, um tema pelo
qual parece obcecado.
Kirill
se encontrou com o papa Francisco em Havana em 2016, num gesto de
aproximação entre os dois maiores ramos cristãos, divididos por um cisma
de mais de mil anos. Fizeram uma declaração conjunta, criticando, entre
outras coisas, o capitalismo. A ideia de que o papa possa demovê-lo do
abismo maléfico em que se lançou é uma fantasia.
Francisco
já consagrou a Rússia e a Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria, tal
como dizia o pedido que os pastorinhos de Fátima contaram ter ouvido de
Nossa Senhora em 1917. Disse que era um “ato espiritual, não um passe de
mágica”.
Infelizmente,
parece que precisamos de mágica – ou milagres – para acabar com uma
guerra como a atual. As orações do papa pela paz são sinceras, embora
ele se manifeste muitas vezes de maneira equivocada e sujeita a
manipulações.
Condenar
agressões e crimes sem nomear os culpados pode acabar rendendo a
Francisco comparações dolorosas com Pio XII, o papa que nunca falou
abertamente sobre os crimes cometidos pela Alemanha nazista, dando nome
aos bois – ou lobos, os piores que já andaram sobre a terra. Em sigilo, a
Igreja ajudou a salvar centenas de milhares de judeus cujo destino era
os campos de extermínio, mas até hoje é sentida a falta de clareza – e
coragem – moral para chamar o mal pelo nome dos que o encarnam.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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