Liceu Sagrado Coração de Jesus, SP. |
À noite, na palestra, me perguntaram sobre quando iríamos mudar nossa educação. A resposta me veio na hora: quando nossa elite, em especial, resolver dar a nossas escolas a mesma importância que vem dando aos aeroportos nos últimos anos. Fernando Schüler para a revista Veja:
Em
Nova Orleans foi o furacão Katrina. A cidade foi arrasada, em 2005, e
transformou a tragédia em uma chance de mudança. As escolas públicas
tradicionais, dominadas pelos sindicatos e com péssimos resultados,
foram substituídas por escolas geridas por organizações privadas, as
chamadas “Charter Schools”, que em poucos anos revolucionaram a educação
da capital do jazz americano. Logo antes da pandemia, os alunos das
escolas Charter apresentavam um custo per capita um terço menor que o de
seus pares do sistema tradicional e uma performance melhor nos testes
do National Assessment of Educational Progress (Naep). Os resultados
mostram uma “vantagem de 52% em matemática, no custo-efetividade do novo
modelo de escola”, diz o pesquisador Patrick Wolf, da Universidade do
Arkansas.
Agora
mesmo em São Paulo temos um exemplo nessa direção. É bem no centro da
cidade, próximo à antiga região da Cracolândia. Ali funciona o Liceu
Sagrado Coração de Jesus. A escola chegou a ter perto de 3 000 alunos no
passado, mas quebrou, vencida pela degradação do espaço urbano. Foi aí
que a prefeitura de São Paulo resolveu propor um novo modelo: a escola
reabre, podendo continuar com os alunos matriculados, mas recebe também
os alunos da rede pública, a partir de um contrato com o governo. A
estrutura está lá, os salesianos têm a expertise educacional, há demanda
e recursos para fazer a parceria. E com um benefício a mais: permitir
que alunos de diferentes perfis socioeconômicos estudem na mesma
instituição, abrindo uma brecha em nosso apartheid educacional. “Quem
estiver interessado na conectividade econômica deverá focar na interação
entre pessoas com rendas diferentes”, diz o professor Johannes
Stroebel, da Universidade de Nova York. Se continuarmos do jeito que
estamos segregando praticamente todas as crianças de menor renda nas
redes estatais, enquanto os mais ricos se concentram nas escolas
privadas, não iremos muito longe. Não se trata de uma equação fácil. Há a
barreira corporativa, a retórica ideológica e aquele que é o maior
obstáculo para qualquer reforma no Brasil: a lei da inércia. Enquanto as
minorias organizadas fazem barulho, a maioria silenciosa, como são os
pais de alunos de menor renda, não tem força política, e por isso tende a
perder o jogo. O detalhe é que eles representam 85% dos estudantes
brasileiros. E se eles perdem, perdemos todos nós.
O
caso do Liceu exemplifica o que gosto de chamar de “revolução
silenciosa” que vem ocorrendo no setor público brasileiro. Ela é dada
por uma divisão de tarefas: os governos se especializam nas funções de
inteligência e regulação, enquanto o setor privado faz o que sabe fazer:
gerenciar a produção de bens e serviços. A saúde pública é um bom campo
de observação desse fenômeno. Ainda na outra semana saiu o ranking dos
melhores hospitais públicos do país. Foram considerados apenas hospitais
que atendem 100% pelo SUS e premiadas instituições de onze estados
brasileiros. Praticamente todos os quarenta melhores hospitais
classificados são gerenciados via organizações sociais ou outras formas
de parceria com o setor privado, como o Hospital do Subúrbio, em
Salvador, administrado na forma de PPP. Isto é, um hospital lucrativo e
voltado ao atendimento público pelo SUS.
Houve
um tempo em que os governos faziam tudo. No Brasil, íamos da Embraer à
Cobal, produzindo aviões e administrando supermercados. Agora as coisas
andam mudando. Por estes dias, li que o governo acaba de anunciar mais
um grande lote de concessões de parques nacionais. Alguns do mais
bem-sucedidos do país, como o Parque Nacional do Iguaçu, já são de
gestão privada há um bom tempo. As áreas de infraestrutura andaram à
frente. Vinte e uma das 23 melhores rodovias do país, segundo pesquisa
da CNT, são geridas pela iniciativa privada através de concessões.
Setenta e oito por cento das vias sob gestão privada foram classificadas
como “ótimas ou boas”, contra apenas 15,5% das vias sob gestão dos
governos. É bom ter os dados, mas nem precisava muita pesquisa para
saber disso. É só viajar um pouco por aí. A mesmíssima coisa vem
acontecendo na área de serviços. A cultura é um ótimo exemplo. O Museu
do Amanhã, no centro histórico do Rio de Janeiro, eleito o melhor museu
da América Latina, é gerido por uma organização social, o mesmo
ocorrendo com todos os museus ligados ao estado de São Paulo na lista
dos melhores do mundo, que incluem a Pinacoteca do Estado de São Paulo e
o Museu do Futebol. Para quem tiver dúvidas sobre como funciona o
modelo, gosto sempre de recomendar uma ida a um concerto da Osesp, na
Sala São Paulo. Vale pelo deleite musical, mas também pela aula sobre
como uma política pública pode funcionar. Devagar vamos abandonando a
velha confusão entre o “público” e o “estatal”, que pautou a vida
brasileira desde ao menos o Estado Novo. O padrão do “Estado faz-tudo”.
Gestão de escolas, presídios e centros esportivos. E quase nada direito.
Há
um sentido civilizatório nisso tudo, que é dado pela seguinte pergunta:
por que os cidadãos mais pobres não podem ter acesso a serviços de
qualidade similar ao que têm os de maior renda? Por que os usuários do
SUS não podem ter acesso a um hospital gerenciado pelo Sírio-Libanês,
como é o Hospital Regional de Jundiaí, no interior de São Paulo? Por que
gostamos tanto de odiar a desigualdade, na teoria, e cultivá-la,
obstinadamente, na prática? Houve um tempo em que padrões mínimos de
igualdade foram obtidos pela universalização do acesso a serviços
públicos, via Estado, nos velhos modelos do welfare state. Com o tempo,
isso se perdeu. A burocracia pública se tornou obsoleta, houve o que
Niall Ferguson bem descreve como a “captura pelos produtores”, e surge a
demanda por um novo modelo, focado não apenas no acesso aos serviços,
mas na excelência. Em que a pauta seja a diversidade, não a
padronização; e o direito dos cidadãos envolva a escolha, não a
imposição.
Tempos
atrás fui a Florianópolis para uma palestra e me surpreendi com a
qualidade do aeroporto da capital catarinense. Ele havia sido concedido,
e uma empresa suíça estava encarregada da gestão. Me dei conta como
finalmente, depois de algumas décadas perdidas com discussões inúteis,
havíamos descoberto que os governos não sabiam gerenciar aeroportos, e
que isso não era mais aceitável em um mundo globalizado. À noite, na
palestra, me perguntaram sobre quando iríamos mudar nossa educação. A
resposta me veio na hora: quando nossa elite, em especial, resolver dar a
nossas escolas a mesma importância que vem dando aos aeroportos nos
últimos anos. Não acho provável que isso aconteça, mas a lição está
dada. É só pararmos um pouco para pensar.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 23 de novembro de 2022, edição nº 2816
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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