No pós-Guerra Fria, a direita dita neoconservadora (ou neocon) dos EUA inventou que, se o comunismo era coisa de esquerda, a democracia era coisa de direita. Bruna Frasolla para a Gazeta do Povo:
Um
dos males do Brasil é a substituição de pensamento por tradução. O
pensamento vem pronto de fora; o que há de se fazer é traduzir e aplicar
ao Brasil. Foi assim com o comunismo, é assim com o liberalismo e –
para a minha surpresa – até com o conservadorismo. O caso do
conservadorismo é uma surpresa porque não existe uma obra clássica que
pretenda lançar receituários conservadores para o mundo. O comunismo
oferece receita de bolo. O liberalismo desde o século XIX vem sofrendo
muitas distorções; mas, considerando-se que o liberalismo é o
liberalismo de Locke e da Revolução Gloriosa, podemos dizer que é
possível extrair dele um receituário, a saber: o de que o poder nunca
deve se concentrar numa única autoridade. Com base nisso, pode-se
defender o capitalismo como uma separação entre poder político e poder
econômico (como fez o liberal Hayek no século XX). Com base nisso,
pode-se defender a democracia, na medida em que ela delega o poder da
escolha a trocentos cidadãos. Com base nisso, pode-se atacar a
democracia do século XXI alegando-se que ela concentra poder demais ao
Judiciário e a agências reguladoras. O liberalismo tem um princípio
abstrato que pode ser aplicado em vários contextos. Podemos dizer que
tal solução é liberal ou iliberal de modo objetivo, sem que isso
implique juízo de valor.
E o conservadorismo?
Burke, reacionário e revolucionário
O
livro que costuma ser apontado como obra inaugural do conservadorismo
são as 'Reflexões sobre a Revolução Francesa', do irlandês Edmund Burke.
Parece-me um bom marco, já que é uma reação ao grande marco político da
Modernidade; cronologicamente, é impossível ser uma reação a algo que
não aconteceu ainda. Assim, mesmo que São Tomás seja um autor apreciados
por conservadores, não sei se faz sentido colocar São Tomás como
conservador, pois isso implicaria a estranha noção de que existia
conservadorismo na Idade Média.
Também
no texto de Burke creio que podemos reconhecer o princípio conservador:
o respeito à tradição. A Revolução Francesa foi a precursora dos vícios
mais perigosos do século XX, já que o totalitarismo sempre parte da
ideia de que a ordem vigente é arbitrária e pode ser substituída por
outra tirada da cachola de um demiurgo. A tradição é considerada espúria
e deve ser substituída na marra.
O
princípio do conservadorismo não é passível de ser aplicado sem atenção
ao contexto, e é indissociável de juízo de valor. Nenhum conservador
afirma que a ordem deve ser mantida sem alterações. O próprio Burke
critica a Revolução Francesa não por ser uma mudança, mas por ser uma
mudança feita do jeito errado, ou seja, em completo desrespeito à
tradição. Assim, toda vez que um conservador optar por conservar, sempre
estará baseado num juízo de valor: de uma cultura que não é perfeita,
ele está optando por realçar tais e tais características que ele julga
boa. Dificilmente um conservador encontrará uma cultura ou instituição
tão perfeita que deva ser congelada para sempre.
Para
voltamos a Burke, ele era “reacionário” em relação à Revolução
Francesa, porém “revolucionário” em relação às colônias inglesas na
América. Apoiara a decisão dos colonos de se livrarem da Coroa, que se
tornava cada vez mais opressiva. A criação dos EUA teve muito de
experimental e de utópico. Ainda assim, é possível defendê-la dentro de
uma chave conservadora, alegando que ela foi feita para preservar a
liberdade que a Coroa tirava. Por outro lado, também seria possível ser
contra a independência dos EUA dentro de uma chave conservadora,
alegando que a unidade do Império deveria ser preservada. Cabe ao
conservador decidir, caso a caso, o que é importante.
Burke
considerou que, no caso americano, a liberdade deveria ser preservada.
Daí se segue que a liberdade deva sempre ser preservada? Então vamos lá:
um conservador deve ser favorável a uma maior liberdade nas relações
amorosas, aprovando, por exemplo, a legalização e a aceitação social das
uniões poliamorosas? Não é possível defender tal coisa sob uma chave
conservadora, porque é totalmente experimental. Tampouco creio que faça
sentido defendê-la de um ponto de vista liberal, mas aí é outra
história.
Variação cultural
Outra
coisa que dificulta a aplicação abstrata e objetiva do conservadorismo é
a variação cultural. Se as culturas diferem, o arcabouço de coisas a
serem conservadas difere. O mundo anglófono tem uma tradição liberal –
muito mais liberal e muito menos conservadora do que o mundo lusófono.
Assim, impor uma ditadura centralizadora seria algo especialmente
contrário ao conservador nesses países. No entanto, caso se tratasse de
impor liberalismo à Rússia, aí sim também se estaria violando ideais
conservadores, haja vista o fato de que a Rússia não tem nenhuma
afinidade com a tradição liberal. É no mínimo tão razoável (ou antes
irrazoável) um conservador russo apoiar o comunismo quanto apoiar o
liberalismo. O comunismo trouxe muita desordem à Rússia, especialmente
na área rural. Mas no âmbito do desenho político, o czarismo não é tão
diferente assim do estalinismo. E quando se impôs à Rússia o formato da
democracia liberal, ela só se estabilizou com o Presidente Pútin, que
está longe de ser impopular em seu próprio país.
A
Reforma Protestante é a coisa mais avessa ao conservadorismo que há. No
entanto, como muitas igrejas protestantes se provaram estáveis após as
convulsões, e como muitas famílias mantêm a fé há gerações, nada seria
mais contrário ao conservadorismo do que fechar essas igrejas na marra,
alegando que têm origem espúria. De todo modo, mesmo no mundo anglófono,
majoritariamente protestante, há uma vinculação entre catolicismo e
conservadorismo. O próprio Burke pode ter sido criado e batizado como
católico graças à mãe, contra a vontade do pai; o maior conservador
inglês do século XX é um católico convertido (Chesterton). Nos EUA, as
grandes objeções ao progressismo não foram feitas sob uma chave liberal;
em vez disso, vieram do “atraso” católico, ao qual só mais tarde se
somaram algumas seitas protestantes.
A propaganda neocon dos EUA
Voltemos
à vaca fria. No pós-Guerra Fria, a direita dita neoconservadora (ou
neocon) dos EUA inventou que, se o comunismo era coisa de esquerda, a
democracia era coisa de direita. E como a esquerda tinha perdido, o
mundo não tinha outra opção senão se tornar uma democracia – nem que
fosse na base da bala, como no caso do Oriente Médio. Francis Fukuyama
decretara que o Fim da História é um mundo globalizado com democracias e
livre mercado; restava dar uma apressadinha tacando bomba na cabeça dos
outros. Mutatis mutandis, é o que os comunistas faziam: pegaram uma
profecia e resolveram dar uma apressada.
Nos
EUA, essa postura é ambidestra. (Trump foi uma exceção, com sua
política de não-intervenção no exterior, que lhe valeu a acusação de
russófilo por parte dos Democratas.) Hoje está em evidência graças aos
esforços dos Democratas em “vigiar” essa coisa hiper-regulada que eles
entendem por democracia, dando pitado inclusive na eleição brasileira.
Eles abandonaram o Afeganistão, cuja “democracia” tinha quotas para
mulheres no parlamento, e passaram a defender a “democracia” de um país
tido por corrupto e de extrema direita até ontem, graças ao seu
Exército, que inclui uma milícia neonazista revolucionária. Refiro-me à
Ucrânia de Zelensky, onde a bandeira do Batalhão Azov, neonazista, pode
ser vista lado a lado com a bandeira do Orgulho Gay.
Ainda
assim, vemos uma certa direita algo desmiolada disposta a importar
qualquer besteira que a direita norte-americana chame de conservadora.
(Alguns direitistas desmiolados inclusive falavam em “ucranizar” o
Brasil, como Sara Winter.) O exemplo mais recente disso foi um texto que
me mandaram traduzir nesta Gazeta, de Dennis Prager. Propaganda pura.
Mitos propagandísticos
O texto intitulado “Por que o valor mais importante do conservadorismo é a liberdade” é ruim demais para ficar sem desmentido.
Prager
afirma que “Todo genocídio do século XX, o século dos genocídios, foi
cometido pelo governo grande. Sem o governo grande, 100 milhões de
pessoas não seriam nem poderiam ter sido assassinadas, e um bilhão não
seriam nem poderiam ter sido escravizadas. (Houve uma exceção: o
genocídio hutu dos tútsis em Ruanda, que foi de natureza tribal. A
cultura tribal, tal como a esquerdista, enfatiza o grupo em detrimento
do indivíduo.)” É uma temeridade afirmar que todo genocídio, excetuado o
de Ruanda, foi cometido por governos. Isso implica um conhecimento
global do século XX que dificilmente um mortal tem. Eu sei que o Sendero
Luminoso, em sua tentativa de fazer uma revolução comunista no Peru,
foi genocida. Ele não tinha o Estado, mas conseguiu criar uma quantidade
imensa de cadáveres. Cartéis de droga podem se mostrar genocidas
também, caso suas atividades sejam bem apuradas.
De todo modo, é um acinte Dennis Prager omitir o Congo Belga, que é notório. Diferentemente das outras coroas europeias, o Rei Leopoldo da Bélgica fez do “Estado Livre do Congo” sua propriedade privada
e não pôs Estado lá. Em vez disso, deixou companhias privadas de
capital inglês atuarem livremente para coletarem o máximo de borracha
possível. Resultado: não havia salário, todo trabalho era forçado. E
como as empresas queriam gastar o mínimo possível de balas, solicitaram
aos seus mercenários que levassem uma mão para cada bala gasta, provando
que usaram-na para matar alguém. Resultado: mãos de gente viva eram
decepadas para acertar as contas com o patrão.
As
empresas de capital inglês chegaram também à Amazônia e fizeram
negociações com o Peru e a Bolívia para locar territórios sem lei e
explorar os índios do mesmo jeito. No Peru, deu certo e o resultado foi o
Genocídio do Putumayo. Na Bolívia, o acordo não foi adiante porque o
Acre foi vendido para o Brasil. A área já estava cheia de seringueiros
nordestinos e revolucionários gaúchos.
Esses
fatos são conhecidos graças ao trabalho de Roger Casement, um
nacionalista católico irlandês que foi enforcado pela Inglaterra, país
cujos empresários estavam envolvidos nesse jeito espúrio de obter
borracha. Casement foi imortalizado na literatura por Joseph Conrad em
No coração das trevas e por Vargas Llosa em O sonho do celta.
Essa
omissão é um acinte. Na virada do século XIX para o XX, as empresas
privadas cometiam genocídio. Os genocídios estatais viriam depois — e
entre eles é bom não esquecer as bombas atômicas lançadas pelos EUA
sobre Hiroshima e Nagasaki.
Outra falsidade é que os EUA veem pela primeira vez sua liberdade de expressão ameaçada. Isso é falso. Como já mostrei
em resenha do excelente livro Liberal Fascism, de Jonah Goldberg, os
EUA foram pioneiros em estratégias totalitárias de propaganda e delação.
Pelas leis de 1917 e de 1918, um cidadão dos EUA poderia ser delatado e
preso por criticar o governo dentro do seu próprio lar. Segundo Prager,
censura é coisa de esquerda. Mas quem fez isso foi um governo defensor
da democracia que guerreava contra o Kaiser.
Outra
afirmação estapafúrdia é que só existe liberdade individual. Isso é
coisa de quem nunca teve seu país ocupado, ou que acha que países não
são importantes – daí não vê nada de mais em tacar bomba nos outros para
instaurar o paraíso de indivíduos livres. Não, senhor Prager. A
liberdade do Brasil é uma pré-condição para a liberdade dos brasileiros.
Por mim, podem levar embora as nuvens da Oracle, bem como essa montanha de ONGs de capital que ofendem e caluniam o meu país.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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