BLOG ORLANDO TAMBOSI
Estamos diante de um governo Bolsonaro que se esfacelou, mas os conservadores de direita não se resumem aos bolsonaristas, e menos ainda se resumem a personagens caricatos em frente dos quartéis. André Marsiglia Santos para a Crusoé:
O
Brasil nunca foi um só e isso passa muito longe de ser um problema. No
entanto, um Brasil insiste em perseguir o outro, sob pretexto de
unificar a nação. O Brasil perseguido, antigamente, habitava recantos
geográficos distantes do litoral. Atualmente os recantos não são mais
geográficos, mas ideológicos. Aqueles que adotam valores religiosos ou
identificados com a ideologia de direita e do conservadorismo são
considerados hoje distantes do litoral do pensamento e se tornam alvos
das tentativas de unificação. Unificar, na prática, significa combater.
Unir os dois Brasis quer dizer enterrar o outro, o diferente, até vingar
só uma visão, a visão única, que será chamada de democrática.
O
discurso de existência de dois Brasis que precisam se unir é antigo.
Quando Euclides da Cunha, na função de correspondente de guerra do
jornal O Estado de São Paulo, visitou o arraial de Canudos, o governo de
então, embora estivesse diante de simples religiosos, fez crer a todos
que enfrentava um levante monarquista antidemocrático, e que os dois
Brasis, uma vez cindidos, careciam de unificação. A unificação veio da
forma como o Brasil costuma resolver seus problemas: com postura
autoritária. Nas palavras do próprio Euclides, em sua obra Os Sertões, o
arraial de Canudos “caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus
últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho,
dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam
raivosamente 5 mil soldados” (…) “No dia 6 acabaram de o destruir
desmanchando-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas”.
Corridos
os séculos, estamos na mesma. Eleito o presidente Lula, diante de uma
multidão de insatisfeitos, o discurso das altas Cortes de nosso
Judiciário é: precisamos combater as tentativas de levante
antidemocrático. O discurso de Lula: precisamos unificar os dois Brasis.
A mensagem é clara: sob o risco da agressão dos insatisfeitos, cabe ao
governo e ao Judiciário agredi-los e restituí-los às profundezas
ideológicas de onde saíram. Quando o crânio de Antônio Conselheiro,
líder de Canudos, foi levado ao litoral, ao Brasil democrático, ao
Brasil pensante, Euclides conta que “deliravam multidões em festa”,
diante daquele “terribilíssimo antagonista”, diante daquele crânio com
as “linhas essenciais do crime e da loucura”.
Unir
um Brasil multifacetado social e culturalmente é uma ambição antiga e
burra, pois autoritária. O Brasil não se une com 5 mil soldados ou com 5
mil decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) rugindo na frente dos
insatisfeitos. O Brasil resultante dessa união forçada é tudo menos
democrático. O Brasil precisa se respeitar.
Estamos
diante de um governo Bolsonaro que se esfacelou, mas os conservadores
de direita não se resumem aos bolsonaristas, e menos ainda se resumem a
personagens caricatos em frente dos quartéis. Nada mais inábil do que
julgar que a direita conservadora seja composta pelos que urram e
marcham.
Enquanto
enxergarmos os Brasis cindidos de forma autoritária, exigindo que se
unifiquem, ridicularizando o diferente como grotesco, acusando-o de
terrorismo à democracia, a liberdade de expressão, premissa da livre
troca de ideias entre diferentes, será um incômodo a ser extirpado pelos
tribunais. O debate político será não muito mais do que uma troca de
acusações e os políticos serão eleitos não por terem melhores ideias,
mas por terem as melhores táticas para extirpar seus oponentes.
Teremos
dois Brasis que, por não se respeitarem, se rejeitam, odeiam-se,
enfrentam-se e, quando se alternam no poder, fazem do governo uma guerra
contra tudo que se construiu antes, e da oposição, uma diária antessala
para o golpismo.
André Marsiglia é advogado. Escreve sobre Direito e Poder.
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