O Eclesiastes é uma proposta de humildade. De se olhar para o próprio “umbigo da humanidade” e perceber suas limitações. Paulo Polzonoff para a Gazeta do Povo:
No
maravilhoso, extraordinário, estupendo e magnífico (exagerei?) “Três
Filosofias de Vida”, Peter Kreeft faz uma surpreendente reflexão sobre a
contemporaneidade do Eclesiastes. Para quem não conhece, o Eclesiastes é
aquele livro da Bíblia atribuído a Salomão e considerado por muitos
(entre os quais me incluo) o mais difícil de toda a Escritura. Tão
difícil que, no último século, surgiram várias interpretações que fazem
uma aproximação entre as palavras do Eclesiastes e o niilismo. Para você
ver.
Entre
outras coisas, Kreeft diz que o Eclesiastes é um livro que dialoga com a
contemporaneidade porque aborda o maior medo do nosso tempo. Que não é o
medo da morte, e sim o medo da ausência de sentido. (O judeu Viktor
Frankl, curiosamente, propõe uma resposta cristã a esse dilema). É um
medo onipresente e expresso tanto pela alta quanto pela baixa cultura.
Estão aí o poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa, e a série “Round 6”,
da Netflix, que não me deixam mentir.
É,
porém, na busca tresloucada pelo conhecimento (comum e equivocadamente
chamado de “sabedoria”) que o Eclesiastes, escrito quatro séculos antes
de Cristo, se aproxima da contemporaneidade. Escreve Kreeft que “a nossa
sociedade cresce à base de saber mais sobre cada vez menos. Sabe mais
sobre as coisas pequenas e menos sobre as grandes. Sabe mais de cada
coisa e menos de Tudo”.
Entidade mágica e toda-poderosa
Deixando
de lado o estilo semipoético do autor e trazendo a contemporaneidade do
Eclesiastes à baila (atenção: aos 43 anos, esta é a primeira vez que
uso “à baila” – e provavelmente usei errado), temos diante de nós uma
pandemia, uma busca desesperada (e infrutífera) por sentido, uma ânsia
macabra de controlar o mundo e uma inequívoca tirania de gente que sabe
mais de cada coisa e menos de Tudo - os chamados “especialistas”.
O
próprio Salomão (ou quem quer que tenha de fato escrito o Eclesiastes)
experimentou a vida assim fragmentada, “especializada”, procurando
sentido ora na filosofia, ora no prazer, ora na riqueza. E até na ética e
na religião. Em cada um desses caminhos, ele encontrou muita coisa, mas
não tudo e certamente não Deus. Simplesmente porque a plenitude é
inalcançável ao homem.
A
nós nos é dado saber muito, por exemplo, de infectologia. Desenvolvemos
modelos matemáticos incríveis que preveem com alguma precisão (tendo
por margem de erro o pessimismo inerente à subjetividade das variáveis)
algo muito específico, como a taxa de contágio e letalidade de um vírus.
Mas somos incapazes de prever os efeitos de medidas criadas para conter
esse contágio e essas mortes, como os lockdowns.
Somos
capazes de dizer, com base em estatísticas duvidosas, que máscaras
podem talvez quem sabe evitar aqui e ali alguma morte por Covid-19. Mas
nos escapam os efeitos sociais e até psicológicos de uma medida
coercitiva dessas. As vacinas, ah, que legal, previnem mortes e dão à
ciência aquele ar de entidade mágica e toda-poderosa – e ao mesmo tempo
racional. Mas não conseguimos dimensionar o efeito colateral dessa
arrogância toda e desse novo deuzinho criado em tubo de ensaio.
Qual
seria a alternativa a essa crença infundada no poder dos especialistas?
Aí é que está. O Eclesiastes, de acordo com Peter Kreeft (e eu tendo a
concordar) não nos dá alternativa porque a função do livro é fazer com
que nos ajoelhemos diante de uma incômoda verdade: somos pequenos,
minúsculos, e quanto mais tentamos nos igualar a Deus mais nos afastamos
dEle. Desde o começo, deveríamos reconhecer que qualquer ação contra
este vírus maldito teria consequências danosas e imprevisíveis.
O
Eclesiastes, portanto, é uma proposta de humildade. De se olhar para o
próprio “umbigo da humanidade” e perceber suas limitações. E, a partir
deste ponto de vista, propor soluções que se sabem imperfeitíssimas. É
uma lição que serve para todas as causas progressistas, cujo objetivo
final, aliás, é a criação de uma utopia que, como o próprio nome diz, é
utópica, irrealizável. Do "grande reset" à gordofobia, passando pela
“igualdade social” à vingança racialista, o Eclesiastes funciona como um
freio para nossas ambições políticas mais extremas.
Justamente
por esse ar aparentemente desesperançado, o Eclesiastes não é de fácil
assimilação. Certa vez, um amigo ateu me disse que o Eclesiastes seria a
Ironia Suprema. Seria Deus assumindo a não-existência de Deus. A frase é
tão boa quanto errada. O Eclesiastes é apenas a confirmação de que
somos pequenos, minúsculos, e que a Eternidade é de uma imensidão mais
difícil de compreender do que o infinito – até porque é maior do que
ele.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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