A social-democracia empreendeu, no poder, medidas de cunho liberal, enquanto os ‘liberais’ atuais estão se mostrando discípulos dos petistas. Artigo do professor Denis Rosenfield, publicado pelo Estadão:
O
governo “liberal” de Bolsonaro inovou em seu liberalismo ao inventar um
novo tripé: o bolsa eleitoral, dito “Auxílio Brasil”; o bolsa
caminhoneiro, denominado por um de seus líderes de bolsa “esmola”; e o
bolsa “Centrão, conhecido por emendas parlamentares dos mais diferentes
tipos, além de cargos governamentais.
Tais
iniciativas são todas paliativas, algumas tidas por temporárias, quando
vieram para ficar, numa aparente obediência às regras legais e
constitucionais; outras almejam a permanência do grupo no poder, tendo
como objetivo assegurar a reeleição do atual presidente. O mesmo uso que
se faz de ajuda aos pobres, embora necessária, encobre uma desmedida
política, que não hesita diante de nada para alcançar as suas
finalidades, a custo de produzir o desmoronamento fiscal, econômico e
social do País. O que mais espanta é o desaparecimento de qualquer
perspectiva de trabalho pelo bem comum, esquartejado nos interesses
particulares e corporativos.
Evidentemente,
os pobres devem ser ajudados. Trata-se de respeito moral com o próximo e
obediência política à Constituição. Ocorre, porém, que tal argumento
está sendo empregado para furar o teto da lei dos gastos públicos, como
se essa infração fosse condição deste atendimento social. Atente-se para
o fato de que o alvo do governo consiste em abrir a porteira para o
estouro da boiada, pois, em ato imediatamente seguinte, o presidente
anunciou que, com a folga obtida, criaria o bolsa esmola para os
caminhoneiros e pagaria e ou aumentaria as emendas parlamentes. Ou seja,
estabelece como regra a irresponsabilidade fiscal, hipoteca o futuro e
aumenta a espiral dos juros e da inflação, com péssimas consequências
para os investimentos privados nacionais e estrangeiros. Os mesmos
pobres atendidos hoje pagarão por isso amanhã.
Acontece
que o governo precisa seguir o seu novo tripé. Poderia, ao contrário do
que faz, não dar mais nenhuma bolsa Centrão, transferindo estes
recursos para os mais necessitados. Poderia reduzir os subsídios fiscais
concedidos a vários setores empresariais; poderia reduzir o custo da
máquina pública; poderia reduzir privilégios nos diferentes Poderes,
alguns exorbitantes. Se assim o fizesse, estaria adotando uma posição
liberal no verdadeiro sentido do termo. Contudo, optou por assassinar o
liberalismo em nome da causa liberal!
O
governo do ex-presidente Fernando Henrique, criticado por ser
social-democrata e, nesse sentido, de “esquerda”, foi muito mais liberal
do que o apregoado por seus detratores. Levou a cabo um impressionante e
bem-sucedido programa de privatizações, reformando o Estado, algo que o
atual governo foi incapaz de fazer. Elaborou um exitoso combate à
inflação graças ao Plano Real, cujos alicerces estão sendo agora
desmontados. Criou uma Lei de Responsabilidade Fiscal, complementada
pela Lei do Teto de Gastos Públicos, de iniciativa do ex-presidente
Michel Temer, algo que está sendo substituído pela irresponsabilidade
fiscal.
A
social-democracia empreendeu, no poder, medidas de cunho liberal,
enquanto os “liberais” atuais estão se mostrando discípulos dos
petistas. Não sem razão, o ex-presidente Lula está elogiando as
iniciativas de ajuda aos pobres, não cansando de repetir que, caso
eleito, não seguirá a responsabilidade fiscal e a Lei do Teto de Gastos
Públicos. Isto é, as afinidades entre os petistas e os ditos “liberais”
expõem um parentesco para além das clivagens tradicionais entre
(extrema)direita e esquerda.
Com
a mudança legal do indexador de cálculo da Lei do Teto de Gastos
Públicos, uma artimanha jurídica para cobrir de legalidade uma atitude
ilegal, o governo também se mostra um seguidor dos petistas, pois, na
verdade, estamos diante de uma nova forma de “contabilidade criativa”. A
da ex-presidente Dilma foi, em sua dimensão, menor do que a que está
sendo atualmente implantada, e terminou pagando por isso. Os atuais
detentores do poder, cientes disso, procuraram dar uma cobertura
jurídica para evitar tal desenlace, o que não diminui a sua
responsabilidade.
Eis
por que o bolsa Centrão é tão importante. Graças a isso, o impeachment
tem muito menos chance de prosperar, possibilitando que os recursos
públicos sejam partidariamente, privadamente e corporativamente
apropriados. Numa situação completamente atípica, o presidente perde o
controle do Orçamento, contentando-se com discursos em todos os cantos
do País como se não mais precisasse governar, procurando tão
exclusivamente a sua própria reeleição.
O cenário é totalmente esquizofrênico na medida em que o País real, em suas necessidades e carências, encontra-se divorciado de sua classe política e das narrativas presidenciais, de nítido teor demagógico. Diz-se respeitar a lei numa flagrante violência da mesma, como se a irresponsabilidade fiscal tivesse mudado de nome. A perversão no uso das palavras é mais um indicativo do desmoronamento da moralidade pública e, sobretudo, de respeito para com o País
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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