Ainda que condenado, Bolsonaro jamais reverá seus gigantescos erros na pandemia. Fernando Gabeira para o Globo:
Quando
saiu o relatório da CPI da Covid, Flávio Bolsonaro disse que seu pai o
receberia com uma gargalhada típica do Bolsonaro. Não há graça nenhuma
em ser acusado de crimes contra a humanidade, algo tipificado pela
Convenção de Roma e adotado pela ONU.
Depois
daquela frase “minha vida aqui é uma desgraça”, Bolsonaro confessou,
recentemente, que chora no banheiro. Esconde da mulher, que o acha o
machão dos machões e, estupidamente, perde uma chance de chorar no ombro
dela. Mas o que esperar do machão dos machões?
O
único consolo que Bolsonaro pode encontrar nessa acusação é a chance de
responder a quem o chama de genocida: “Alto lá! Genocida não, apenas
cometi alguns crimes contra a humanidade”.
Embora
tenha explicado aqui, usando até Freud na sua visão de negacionismo,
até hoje não entendo bem por que Bolsonaro e tantos seguidores se
recusaram a dar importância ao vírus.
Creio
que houve nessa negação muito de guerra cultural: se os adversários se
preocupam tanto com o coronavírus, uma maneira de enfrentá-los é
desmistificar o perigo.
O
ex-ministro Ernesto Araújo via na pandemia um perigoso processo de
dominação autoritária internacional. O próprio Bolsonaro insistiu no
tema da liberdade e, na célebre reunião de abril de 2020, chegou a
desejar a luta armada contra as medidas de distanciamento social.
Existe
uma ponta de paranoia. É como se os adversários, não os tendo dominado
por argumentos, adotassem agora teses científicas como a preservação da
vida para conquistar o que sempre aspiraram: roubar sua liberdade.
Tenho
certo escrúpulo de avançar nesse caminho, pois a distância da
realidade, nas mentes perversas, pode funcionar como um álibi.
Não
se julga um crime contra a humanidade a partir de uma avaliação
psicológica. O que importa são mais de 600 mil mortos e todos os
mecanismos de negação oficial responsáveis por esse número escandaloso.
Quando
houver o julgamento e puder escrever sobre ele, pretendo levar em conta
todas as dimensões que me preocupam. Hannah Arendt, no julgamento de
Adolf Eichmann em Jerusalém, nos contemplou com uma importante visão da
banalidade do mal. Citei seu argumento no Tribunal Russel, em Roma,
quando falava da tortura e torturadores no Brasil.
Mas,
agora, sinto-me diante de uma situação muito diferente. Constatei
inúmeras situações em que o negacionismo de Bolsonaro se manifestava em
pessoas comuns. Em muitas delas, tive a sensação de que temiam
reconhecer a gravidade do vírus porque isso seria se render ao outro.
Era como se houvesse dentro delas uma espécie de pavor em concordar,
como se fosse realmente uma ameaça à própria identidade.
No
caso de Bolsonaro, além de negar porque o vírus ameaçava seu governo,
ele sempre ressaltava o comportamento de maricas de quem dava muita
importância à pandemia.
Sua
imitação dos movimentos de quem sente falta de ar, além da crueldade
que encerra, era também uma espécie de crítica ao que ele considera
frescura: agonizar por falta de oxigênio.
Mesmo
que seja condenado, Bolsonaro jamais reverá radicalmente seus
gigantescos erros na abordagem da pandemia. Aceitar as evidências é algo
mais perigoso que perder o governo ou mesmo ir para a cadeia.
Na
verdade, há um tipo de angústia que define seu comportamento e que, por
sua profundidade, é mais ameaçadora que a própria falta de ar.
Bolsonaro
está condenado a não mais tomar um caldo de cana na esquina, a chorar
longe do ombro da mulher, a responder por crime contra a humanidade —
tudo isso porque não conseguiu decifrar o próprio enigma.
Quem vive tão enfaticamente na escuridão não poderia ter nos oferecido outra coisa senão um governo de trevas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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