Pelo menos até agora: a venda de uma mineradora de ferro e cobre, sobre a qual não deveria saber de nada, a seu melhor amigo, volta a ser problema político. Vilma Gryzinski:
Ter
offshores não é crime e as empresas em paraísos fiscais muitas vezes
são o jeito mais eficiente de fazer negócios ou comprar imóveis no
exterior.
Também não é crime fazer o possível, dentro da lei, para pagar menos imposto de renda. Chama-se planejamento fiscal.
As
ressalvas são necessárias porque o caso dos Pandora Papers, a nova
enxurrada de documentos revelando segredos financeiros de 35 atuais ou
ex-chefes de estado e 330 funcionários de alto escalão, incita à
condenação sem apelo de qualquer um que apareça lá.
É
claro que as offshores também protegem – ou protegiam, hoje se revelam
furadíssimas – negócios escusos e corruptos top de linha.
Ninguém
fica exatamente surpreso ao saber que uma ex-amante de Vladimir Putin, o
presidente do Quênia ou o rei da Jordânia estejam na lista.
Mas
é de doer o coração ver o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, um
comediante que se elegeu justamente por encarnar um outsider que
combateria a corrupção endêmica no país, aparecer como dono de três
imóveis em Londres comprados via uma offshore.
O
primeiro-ministro da República Checa, Andrej Babis, poderia muito bem
ter declarado o château de 22 milhões de dólares que comprou no sul da
França. Como multimilionário, tem cacife para isso. Preferiu ficar na
moita. E também não ficou mal na foto: aparentemente, seu partido deve
ser o mais votado na eleição desse fim de semana.
Mais complicada é a situação de Sebastián Piñera, outro multimilionário (2,8 bi) que entrou para a política.
Piñera,
que vendeu negócios bem sucedidos à época, como um canal de televisão e
a Latam, para não aparentar conflito de interesses, quando foi eleito
presidente pela primeira vez, em 2010, é provavelmente o mais enrolado
da lista dos Pandora Papers.
Nessa
segunda fase como presidente, tem enfrentado uma crise atrás da outra
e, mesmo tendo sido pioneiro na vacinação contra a Covid, continua a ser
um recordista de impopularidade – no auge dos protestos pré-pandemia,
chegou a bater em inacreditáveis 6% de aprovação.
Agora,
a oposição quer abrir um processo de impeachment por causa da
mineradora de Dominga, cuja venda é retratada em detalhes pelos Pandora
Papers.
Teoricamente,
a venda da parte de Piñera e família na mineradora da qual eram os
maiores acionistas foi feita sem seu conhecimento, pois os seus bens
estavam sendo administrados por um fundo fiduciário, um blind trust do
tipo criado para justamente evitar conflitos de interesse por parte de
políticos e altos funcionários.
A
parte da família Piñera na mineradora de ferro e cobre, com um porto de
escoamento pelo Pacífico, foi comprada por um amigo de infância e sócio
do presidente, Carlos Alberto Délano.
Uma
das condições para a finalização do negócio de 152 milhões de dólares ,
fechado majoritariamente nas Ilhas Virgens Britânicas, era que a região
onde fica a mina não fosse incluída numa área de proteção ambiental.
Foi exatamente isso que aconteceu.
Ou
seja, para que não tenha havido ou parecido haver conflito de interesse
é preciso acreditar que o presidente não sabia que o comprador da
Dominga era um amigo de longa data. E que tampouco sabia da importância
da decisão sobre o projeto ambiental arquivado.
O
caso já foi investigado pela Câmara e pela justiça. Piñera foi
exonerado. Ele enfatizou que estava afastado de seus negócios desde 2009
e só veio a saber da venda da mineradora em 2014, quando acabou seu
primeiro mandato presidencial.
O
problema é que Piñera é um presidente fraco e a oposição de esquerda
adoraria arrastá-lo para um impeachment, tendo em vista a eleição
presidencial do mês que vem.
Durante
a eclosão dos protestos de 2019, o Chile pendeu mais para a esquerda e a
nova carta que está sendo elaborada por uma assembleia constituinte tem
trechos que parecem saídos da Revolução Francesa.
Mas
a eleição presidencial ainda está indefinida. O mais bem colocado é o
esquerdista Gabriel Boric, com 22% das preferências. Mas os dois
candidatos à direita somam quase 30%.
Os
Pandora Papers põem uma pimenta a mais num ambiente político já
naturalmente aquecido pela tensão pré-eleitoral. Na próxima semana, a
oposição apresentará o que é chamado no Chile de acusação constitucional
contra o presidente, por improbidade.
Sair
da presidência desprestigiado é uma coisa, sair desmoralizado é muito
pior. Principalmente quando envolve o tipo de político, como Piñera,
para o qual perder a honra pesa e machuca.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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